Continuando a abordagem da CENA 7 de A causa secreta: Fortunato funda a casa de saúde, não só para obter lucros, mas — e sobretudo — pela satisfação de estar com os doentes. Até Garcia, ainda atento aos movimentos do agora sócio, se surpreende com o desempenho de Fortunato na casa de saúde, com a abnegação deste: “Garcia pôde então observar que a dedicação ao ferido [Gouveia] da rua de D. Manoel não era um caso fortuito, mas assentava na própria natureza deste homem. Via-o servir como nenhum dos fâmulos. Não recuava diante de nada, não conhecia moléstia aflitiva ou repelente, e estava sempre pronto para tudo, a qualquer hora do dia ou da noite. Toda a gente pasmava e aplaudia”. Fortunato, mesmo com a convivência mais próxima, prossegue misterioso aos olhos de Garcia. Na cena ainda é dito que, na casa de saúde, Fortunato estuda, acompanha as operações e que “nenhum outro” cura “os cáusticos”. Ou seja, que ele se aplica ainda na cauterização (procedimento médico para, por meio de queima, destruir lesões, cicatrizes, ou parar o sangramento de pequenos vasos). Algo que funciona como um índice importante da cena mais cruel do conto — a que logo virá, em que Fortunato cortará e queimará as patas do rato. Ainda na CENA 7 é dito que, pela “comunhão de interesses”, se apertam os “laços de intimidade” entre Garcia e Fortunato. Neste passo é que o narrador traz duas informações importantes: 1) que Garcia descobre em Maria Luísa uma “solidão moral”; 2) que ele passa a se “agitar” interiormente quando a vê (inclusive ao piano, tocando “umas músicas tristes”). Ou seja, começa efetivamente a paixão do jovem médico pela mulher de Fortunato. Quanto se descobre apaixonado, Garcia — à maneira de Gouveia na CENA 4 — coloca para si também um problema moral: “expelir” do coração o amor que sente por Maria Luísa ou preservar a relação de amizade com Fortunato? Garcia resolve “trancar” a paixão, ou seja, silenciá-la. Maria Luísa, por sua vez, compreende “ambas as coisas, a afeição e o silêncio”, porém “não se dá por achada”. Visto de outro modo, o silêncio de Garcia é ainda por interesse: serve, não só para preservar a amizade, mas também a sociedade com Fortunato. CENA 8: É feita inicialmente uma referência a “um incidente” que, para Garcia, desvela ainda mais a “situação” de Maria Luísa no casamento com Fortunato. O “incidente” é em seguida indicado: “Fortunato metera-se a estudar anatomia e fisiologia, e ocupava-se nas horas vagas em rasgar e envenenar gatos e cães”. Impedido de fazer suas experiências na casa de saúde, pois “os guinchos dos animais atordoavam os doentes”, Fortunato acaba transferindo o laboratório para casa. E Maria Luísa, “compleição nervosa”, é que tem que “sofrer” por esses guinchos. Maria Luísa, então, não podendo “ver padecer” os bichos, pede a Garcia que intervenha no caso e faça com que Fortunato cesse “tais experiências”. Mas pede usando um artifício: que Garcia não a envolva na solicitação ao marido, que procure agir como se fosse um pedido próprio, como se fosse uma coisa dele (de Garcia). Ora, Maria Luísa, como foi dito anteriormente, pela aproximação, ou melhor, pela convivência, intimidade, já sabe quem é o marido. A “situação” dela, portanto, é a de alguém que vive um impasse: por um lado, condoída, não aceita as experiências com os animais, e, por outro, se manifestar para o marido que está sofrendo por “tais experiências”, nutrirá o sadismo dele. Maria Luísa, efetivamente, está sofrendo muito. E a doença da alma começa a atingir-lhe o corpo — ao ponto de o jovem médico já desconfiar e pedir-lhe para “ver o pulso”, o que ela recusa. Garcia aí fica “apreensivo”. E passa mesmo a acreditar que ela pode “ter alguma coisa”, que é “preciso observá-la e avisar o marido em tempo”. “Ter alguma coisa”, portanto, é um outro índice importante: já remete para a doença fatal (tuberculose) de Maria Luísa.