Machado de Assis e o sadismo (7)

CENA 9 de "A causa secreta": trata-se da cena mais cruel do conto
Machado de Assis, autor de “Dom Casmurro”
01/11/2010

CENA 9 de A causa secreta: trata-se da cena mais cruel do conto. É o momento em que Garcia flagra Fortunato cortando, uma a uma, as patas de um rato com uma tesoura. O jovem médico vai jantar com o casal e, ao dirigir-se ao gabinete de Fortunato, depara-se com Maria Luísa aflita, a voz sufocada: “O rato! O rato!”. Ocorre então a Garcia que, na véspera, ouvira Fortunato reclamar de um rato que lhe carregara “um papel importante”. Tudo se passa como se fora um procedimento habitual de cauterização (a queima para conter um sangramento), só que, no caso, o sangramento é impiedosamente provocado por Fortunato, num claro — e extremo — exercício de sadismo. Causa impacto na cena, além do rato, ensangüentado, se estorcendo e guinchando de dor, a reação de Fortunato, relatada com requintada ironia. Fortunato — anota o narrador — apresenta “um sorriso único”, que, podendo ser “reflexo de alma satisfeita”, expressa “a delícia íntima das sensações supremas”. Garcia, no gabinete, retrai-se diante de um Fortunato que lhe impõe “medo”, “com toda aquela serenidade radiosa da fisionomia”. Garcia, como o leitor, sente “repugnância” por espetáculo tão tosco. A expressão de Fortunato após aparar as patas do rato já “meio cadáver” não é a de quem sente “raiva, nem ódio”, mas tão-somente “um vasto prazer, quieto e profundo, como daria a outro a audição de uma bela sonata ou a vista de uma estátua divina, alguma coisa parecida com a pura sensação estética”. Fortunato, distante, perdido no ato sádico, até esquece Garcia ali no gabinete, à frente dele. Fortunato encerra o espetáculo de sadismo cortando o focinho do rato, para, em seguida, “sobressaltando-se” ao dar com o médico, mostrar-se “enraivecido contra o animal, que lhe comera o papel”. O narrador, atento: “a cólera evidentemente era fingida”. Garcia conclui o caso com uma suspeita, que se apresenta, muito provavelmente, como a principal chave interpretativa de Fortunato: “— Castiga sem raiva, pela necessidade de achar uma sensação de prazer, que só a dor alheia lhe pode dar: é o segredo deste homem”. Finalmente, vem a CENA 10 – é o desfecho do conto. Exemplo de “dor moral”, conforme o próprio narrador, ao descrever o choro convulso de Garcia diante de Maria Luísa morta. A “frágil” Maria Luísa, amada por dois homens: por Fortunato (“amava deveras a mulher, a seu modo, estava acostumado com ela, custava-lhe perdê-la”) e por Garcia (um “amor calado”). Fortunato, antes do choro de Garcia, ao descobrir o amigo e sócio debruçado beijando a testa da mulher morta, ainda chega a desconfiar: “não podia ser o beijo da amizade, podia ser o epílogo de um livro adúltero”. Mas erra no cálculo, pois a paixão de Garcia por Maria Luísa não resulta, em momento algum, em adultério. O choro de Garcia, diante de Maria Luísa, é assim descrito: “O beijo rebentou em soluços, e os olhos não puderam conter as lágrimas, que vieram em borbotões, lágrimas de amor calado, e irremediável desespero”. O marido de Maria Luísa, por seu lado, embora ressentido e “assombrado” com Garcia, não disfarça a satisfação ao ver o jovem médico soluçar: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranqüilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa”.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho