Duroc atrás do gol

O exército de anões em Waterloo perdeu a batalha na imensidão de uma caixa de fósforos
Ilustração: Carolina Vigna-Marú
01/11/2010

Nunca tive animal de estimação. Se tivesse, seria um porco. Tenho uma dívida ancestral com um alfeire que me persegue em sonhos e pesadelos. Todos muito magros, castigados pela infâmia do pouco milho, da lavagem rala, dos maus-tratos de uma casa onde os restos eram disputados com sanha pelo exército de animais famélicos que a habitava. Muitas bocas a mastigar, às vezes, o vazio. Dávamos-lhes farelos azedos no cocho gasto, que logo abrigaria outro curioso focinho em busca de uma saciedade impossível. Antes dela, a faca; a mão firme do pai a rasgar a carne que nos alimentaria. Vivíamos numa estranha cadeia alimentar: nossas sobras forjavam um porco róseo e inquieto; sua carne e banha nos causavam a aparente sensação de que sobreviveríamos mais um tempo. Enganávamo-nos mutuamente até a morte. Dele.

Éramos um bando de piás desocupados a sonhar com um gol milion­ário, que nos levasse para bem longe, para mundos de desejos e fartura, mulheres bonitas e carros interplanetários. Naquele fim de semana, já acostumados à insânia de C., caminhamos quilômetros até chegar — com nosso estropiado time de futebol, um exército de anões em Waterloo — à cancha de areia que abrigaria um estranho torneio de futebol, um torcedor gorduroso e inquieto, algumas intrigas e um mistério nunca solucionado. Vitória após vitória, o time liderado pelos meus inacreditáveis gols chegaria à final contra a equipe da casa. Dois dias de batalhas colossais, areia a rasgar as canelas frágeis daquele arremedo de time a beirar à comiseração. Combatíamos com ferrenha voracidade as tropas napoleônicas. Eu no ataque; meu irmão no gol. Entre nós, espalhados pela cancha, Ximbica, os irmãos Valter e Valdir, Joãozinho, mais um Rogério, e outros cujos nomes já se esfarelaram no passado. No sábado, vencemos todos. Voltaríamos no domingo para o epílogo de uma frustração.

Antes de tomar o caminho de casa, avistei-o. Como não o vira quando chegamos à cancha? Enorme, olhou-me com indiferença. Movimentava-se com dificuldade pelo exíguo chiqueiro. Aproximei-me receoso. Ninguém consegue ficar indiferente a um duroc. Sim, um imenso duroc urbano: gordo, banhudo, farto de perspectiva a qualquer olhar faminto; as bordas do corpo a espalhar uma apetitosa esperança. O cocho vazio denunciava a saciedade. O chiqueiro de dimensões desprezíveis tinha maestria: sem espaço para movimentar-se, gastava menos energia e engordava mais rapidamente. Um condenado à espera da eternidade, se é que ela também existe para os porcos. Ou não existe para ninguém?

Nunca assisti à morte de um duroc. Imagino tarefa das mais difíceis penetrar aquela imensidão de banha até que a pontiaguda faca encontre o coração. Não, acho que não é assim. Talvez um golpe de machado na cabeça resolva. Ou um tiro de bazuca. Sei lá. Um duroc pode pesar próximo dos 500 quilos. É difícil, mas possível. Um verdadeiro monstro de carne e futuro torresmo. Nas redondezas do fim do mundo, onde os navios portugueses cairiam caso se aventurassem por aqueles lados, nossos pequenos e delgados porcos eram mortos nas manhãs de sábado. O ritual causava-nos a ansiedade da espera. À noite, nos debatíamos a aguardar o grito que acordaria o dia até os confins do inferno. O pai não nos deixava acompanhá-lo ao chiqueiro do condenado. Criança precisa manter distância da morte. Três adultos eram suficientes. Dois seguravam o bicho a debater-se, tentando negar uma falsa eternidade. O pai, então, levantava a perna do porquinho e cravava a faca com a barbárie herdada. O grito ensurdecedor e intermitente — em golfadas como se em busca de uma última esperança — chegava-nos. Uma pedrada no ouvido. Os berros do animal ficavam rondando a casa durante dias; ainda hoje dá voltas pelo meu corpo. O grito de um porco a morrer é a certeza de que o inferno é possível.

Depois da morte, a humilhação. O corpo inerte era jogado sobre uma mesa velha de madeira. Podíamos assistir a distância. Do tacho a água fervente vinha em canecas de alumínio. O jorro fumegante espicaçava o pêlo do porco, agora, silencioso. Pelado sobre a mesa, uma foca branca num mundo a milhares de quilômetros do mar. O tacho seria seu último destino. As patas eram cortadas e jogadas no fogo para amolecer o desprezível casco. As vísceras, separadas. A carne nos alimentaria durante alguns dias. A gordura transformava-se em banha, armazenada em latas na cozinha. Ao abri-las, a mãe fingia não se incomodar com o grito aprisionado.

Voltamos no domingo com a óbvia esperança do título. Nosso estropiado time era expectativa e alegria. Mais dois adversários derrotados. Eu tornara-me o artilheiro da competição. O duroc espremia-se no chiqueiro. Não vibrava com meus gols. No fim do dia, a decisão contra o time da casa. Perdemos. Por pouco, muito pouco, não conquistáramos o mais que desejado troféu. Iríamos colocá-lo no boteco do bairro, onde ficávamos em volta das mesas de sinuca à espera do fim das partidas dos adultos. Torcíamos para que muitas bolas restassem na mesa. Feito pássaros a catar migalhas na praça, derrubávamos todas com uma fúria desesperada.

Mesmo com a segunda colocação (sem direito a troféu), eu levaria para casa a medalha de artilheiro. Desfilaria a carregá-la no peito por entre os vãos da morada urbana. Já sentia os olhares silenciosos, mas orgulhosos, da mãe e do pai. Deixamos as bordas do abismo, onde almas penadas e boitatás se divertiam às nossas custas, para vencer. No entanto, guardada em uma caixa de fósforos pela organização do torneio, a medalhinha simplesmente sumira. Caíra em algum sulco daquela terra estrangeira. Talvez ao lado do chiqueiro do duroc. Quantos quilos teria? Vivera quanto tempo mais? Como morrera? Berrara muito? Inúteis perguntas enquanto voltava para casa de mãos abanando.

Minto ao dizer que nunca tive um animal de estimação. Lembro-me perfeitamente dos cães Princesa, uma péssima falsificação de pastor alemão, e Branquinho, um vira-lata de sangue puríssimo. Não eram meus. Pertenciam a nossa casa; à família, digamos. Não sei como surgiram. Mas agora, parece uma imensa ironia termos, naquela época, uma cadela chamada Princesa. Uma princesa rodeada de vagabundos, hospedada num castelo de frestas eróticas nas tábuas que não agüentavam o massacre do tempo. Era agitada; preservava algo da raça que lhe dava apenas meneios de pastor alemão. Era uma princesa a dançar de sapato de salto quebrado com o príncipe caolho. Um dia, o pai daria fim ao sofrimento. De quem? Quando os animais de estimação começam a disputar a comida com os donos, alguém sai derrotado. Além de comida, dizem que animal de estimação também precisa de amor. Se o amor entre nós era pouco (ou seria apenas silencioso?), como dividi-lo com dois cães? Nos fundos de casa, mantínhamos um pequeno porco a engordar — um animal de sobrevivência. Um fim de tarde, o pai pegou a velha kombi da chácara de flores onde morávamos, trabalhávamos e esperávamos por algo, e levou Princesa e Branquinho para muito longe. Podíamos dormir em paz: restava-nos apenas o porco. Algum tempo depois, pela rua pedregosa, avistamos a dupla de cães: Branquinho mancava de uma pata; Princesa tinha o pêlo amassado, e perdera os poucos resquícios de majestade. Não tivemos outra saída: acolhemos a ambos novamente em nosso improvisado castelo. Em breve, o grito do porco rondaria todo o reino, anunciando alguns dias de fartura e alegria.

Dos jogadores, Ximbica foi engolido pelas drogas e pela terra de algum cemitério; os irmãos Valter e Valdir são pagodeiros; Joãozinho perdeu-se na bandidagem; o outro Rogério se suicidou devido a um amor fracassado — um Werther suburbano; meu irmão sobe em telhados. Eu conto esta história e, sempre que possível, abro caixas de fósforos.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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