Oração

Olhai por nós, Senhor, na solidão perpétua do corpo, no descanso eterno de todas as nossas inquietações
Ilustração: Raquel Matsushita
02/09/2020

Anda a espreitar meus olhos para roê-los,
E há de deixar-me apenas os cabelos,
Na frialdade inorgânica da terra!
Psicologia de um vencido, Augusto dos Anjos

Senhor, livrai-nos da morte. Desta morte que nos arrasta aos montes a covas coletivas, velórios apressados, enterros desprovidos do verdadeiro luto. Já somos mais de cem mil corpos transformados em vazio e desespero neste imenso vale de lágrimas. Não basta tanta gente no insalubre matadouro? Livrai-nos, Senhor, o quanto antes deste vírus e suas múltiplas garras afiadas a nos esculpir as vísceras pestilentas. Livrai-nos, Senhor, dos tentáculos das chagas, das pústulas que não pedimos. Não imploramos pela escultura improvisada nos pulmões, na garganta, nas partes desconhecidas destes que aqui estamos pela Vossa mão. Livrai-nos, Senhor, do estrago vulcânico que nos leva ao Teu encontro ou ao do Teu adversário na escuridão eterna. Livrai-nos, por clemência deste exército de flagelados, dos respiradores artificiais, das máscaras que ocultam a agonia, dos hospitais atulhados, enlouquecidos na tentativa de evitar a derrota do corpo, a falência das engrenagens. Muitas vezes, Senhor, não conseguem deter a erosão nas encostas da nossa frágil carne. E, de repente, a cratera em nós leva-nos a outro território. Olhai por nós, Senhor. Por este filho do carbono e do amoníaco.

Livrai-nos, Senhor, dos corredores solitários, das macas improvisadas, das madrugadas agônicas, monstro de escuridão e rutilância, das sondas a nos arrancar os resquícios de dignidade. Livrai-nos, Senhor, das mãos desesperadas que nos espetam em partes indesejadas. Olhai pelo batalhão de médicos e enfermeiros, atônitos com o inimigo oculto nas próprias vestes, na sola do sapato, no trinco da porta, no bocejo da fadiga. Todos ignoram que sofremos desde a epigênesis da infância. Seja no célebre Albert Einstein, seja no muquifo ao lado da rodovia. Olhai por nós, Senhor, quando abandonados ao relento da entubação, sob a influência má dos signos do zodíaco, com a pele em chamas, coberta de vermes a se refestelarem na ausência da Tua intercessão. Mesmo profundissimamente hipocondríaco, este ambiente me causa repugnância. Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia que se escapa da boca de um cardíaco. Senhor, quem são todos estes seres de branco que gravitam ao nosso redor? Anjos ou fantasmas à nossa espera?

Olhai por nós, Senhor, quando o derrame nos alcançar e nos paralisar apenas parte dos movimentos deste corpo — depósito provisório da alma, que em breve será Tua. Livrai-nos, Senhor, do derrame parcial: leva-nos de uma vez ao Teu encontro. Livrai-nos da cadeira de rodas, da fralda geriátrica, da boca sem rumo em busca das palavras antes tão banais. Livrai-nos ainda do infarto, do afogamento no barco precário, das chamas terrenas, das balas perdidas, dos carros embriagados. Livrai-nos, Senhor, de todos os males. Não tenha pressa, Senhor. Leve-nos na paciência da velhice (sem esclerose múltipla). Mas leve-nos de uma vez só, sem paradas, numa viagem rápida e derradeira. Caso contrário, Senhor, deixe-nos por aqui a zanzar em nossas incertezas cotidianas.

Ah, Senhor, por que colocaste (mesmo que provisoriamente) o demônio para cuidar do teu rebanho?

Livrai-nos, Senhor, da imbecilidade perversa que nos guia em frases a espalhar perdigotos da desgraça. Das mãos a fazer o gesto do revólver — amparadas pelas patas bífidas dos três filhos de olhos diabólicos — só vem destruição. A quem, Senhor, ele aponta aquela arma imaginária? A nossas já frágeis figuras consumidas por este vírus? Não precisamos, Senhor, de mãos a nos empurrar à cova — já temos as balas dos milicianos, dos traficantes, dos corruptos, dos políticos: cada um a sua maneira a nos levar a uma indesejada eternidade. Precisamos, Senhor, de uma mão que nos arranque desta imensa cova. Dai-nos a mão, dai-nos um pouco de esperança.

Mas ao acordar de sonhos intranquilos, Senhor, não nos encontramos metamorfoseados num inseto monstruoso: somos assombrados pela violenta estupidez deste homem a babar a morte com a pança ancorada no balcão da pastelaria. A invocar torturadores, a queimar florestas como a preparar as labaredas de seu inferno particular, a negar a morte de milhares, a espalhar panfletos digitais encharcados de mentiras, a tripudiar da nossa desgraça diária. Ah, Senhor, por que colocaste (mesmo que provisoriamente) o demônio para cuidar do teu rebanho?

Já o verdadeiro verme — este operário das ruínas —, que o sangue podre das carnificinas come, e à vida em geral declara guerra, anda a espreitar meus olhos para roê-los, e há de deixar-me apenas os cabelos, na frialdade inorgânica da terra! No silêncio, o verme se multiplicará e escavará os dutos pela nossa imobilidade. Limpará o esqueleto de qualquer impureza. E nos restará um sorriso escancarado. A alguns faltarão dentes. Olhai por nós, Senhor, na solidão perpétua do corpo, no descanso eterno de todas as nossas inquietações. Não nos abandone no exíguo espaço entre as flores que logo murcharão. Arraste-nos com a fúria da benevolência para o Teu lado. Guardai, Senhor, um espaço para todos nós. Ou pelo menos àqueles que o merecem.

Olhai por nós, Senhor, na noite escura que parece não ter fim. Amém.

 

NOTA
Texto escrito em junho de 2011 e reescrito para este momento de incertezas e perdas. Os versos do soneto Psicologia de um vencido, de Augusto dos Anjos, foram integralmente utilizados nesta prece.

 

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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