Foi assim
René Armand Dreifuss inovou no estudo do golpe militar de 1964 com um livro-marco: A conquista do Estado. Ação política e golpe de classe (Petrópolis: Editora Vozes, 1981), fruto de sua tese de doutorado, apresentada na Universidade de Glasgow. O cientista político uruguaio, radicado no Brasil, realizou um levantamento minucioso do acordo político que urdiu uma conspiração envolvendo civis e militares para derrubar o governo João Goulart. O golpe foi cuidadosamente gestado por meio de duas frentes de atuação. De um lado, o Instituto de Pesquisa e Estudos Sociais (Ipes) responsabilizou-se pela promoção de ideias anticomunistas através da produção de peças de propaganda — filmes, documentários, folhetos, revistas e livros. De outro, o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) assumiu a tarefa de apoiar uma nova geração de políticos para assegurar uma forte bancada suprapartidária, porém afinada com os princípios defendidos pelo Ipes. O “complexo Ipes/Ibad”, termo empregado por Dreifuss, foi fundamental na montagem da articulação civil-militar, sendo pois um movimento muito mais enraizado na sociedade brasileira do que apenas um golpe exclusivamente militar.
O Ibad contou com recursos generosos de empresários brasileiros e mesmo abundantes fundos norte-americanos para eleger políticos de diversos partidos afinados com uma certa concepção de mundo e sobretudo aliados na adoção de um modelo determinado para a realidade brasileira.
(Certamente, você pensou em organizações contemporâneas, tais como “RenovaBR”. Ou não? Pois pense!)
O Ipes tampouco teve problemas de financiamento. Magnânimos, mais uma vez, por que será?, os norte-americanos foram copiosos no apoio: não seria por falta de dólares que a conspiração fracassaria. E não se esqueça da colaboração de grandes empresas brasileiras e de empresários nacionais. Dois ou três nomes? Mário Henrique Simonsen, Walter Moreira Salles e José Magalhães Pinto. O diretor do Ipes? Acredite: o general Golbery do Couto e Silva. Após o bem-sucedido golpe militar, o general deixou o Ipes para presidir o Serviço Nacional de Informações — o temido SNI, que se transformou num Estado dentro do Estado. A principal função do Ipes foi a de gerar uma atmosfera favorável à deposição de João Goulart, por meio da manipulação de dados e da criação de narrativas, com ênfase no conteúdo audiovisual, que pretendiam difundir para o maior número possível de pessoas o medo do “iminente perigo vermelho”.
(Nada direi, sozinha você já estabeleceu os paralelos.)
A produtora Brasil Paralelo, fundada em 2016, representou para a chegada ao poder do bolsonarismo e da extrema-direita o papel que o Ipes desempenhou na preparação do golpe civil-militar de 1964. Especialmente, os imaginativos documentários realizados pela produtora aprimoram uma versão revisionista da história brasileira que se encontra na origem do “conhecimento” de boa parte da militância bolsonarista.
(Ao se preparar para a fantasia fora de lugar da Embaixada em Washington, o deputado federal Eduardo Bolsonaro revelou sem pudor aparente o abismo de sua erudição: ele estudava os documentários da Brasil Paralelo.)
É assim
Vejamos o exemplo mais conhecido dessa ficção historiográfica.
O documentário 1964 — O Brasil entre armas e livros ainda não foi devidamente discutido; afinal, como levar a sério a delirante reconstrução factual de seu criativo roteiro? No entanto, o filme é importante, pois ajuda a decifrar a esfinge que ameaça a inteligência de muitos: o caráter bélico do governo de Jair Messias Bolsonaro. Por que, após 20 meses de exercício do poder, a insistência numa retórica agônica, definidora de campanhas eleitorais, mas que o bom senso recomenda abandonar logo após o resultado do pleito? Ora, além de navegar, governar também é preciso.
(E isso em meio à maior tragédia da história brasileira, na atual peste da covid-19.)
A resposta encontra-se no documentário; mais precisamente em seu subtítulo.
Eis a premissa que organiza o filme: a história brasileira só se torna inteligível quando inserida no contexto internacional. Tal moldura favorece a explicação de processos complexos por meio de teorias conspiratórias, tão ao gosto do sistema de crenças Olavo de Carvalho.
Desse modo, a compreensão do golpe de março de 1964 exige a reconstrução das circunstâncias da Guerra Fria. Esta, por sua vez, demanda um recuo estratégico à Revolução de Outubro de 1917. Assim, o momento “armas” é entendido no seio de uma disputa planetária que opôs soviéticos a norte-americanos. Na narração do filme: “Os Estados Unidos protegem as Américas do comunismo”.
Procedimento idêntico retorna no instante “livros”, próximo ao final do documentário. Na narrativa apresentada, o triunfo paradoxal da esquerda brasileira, militarmente derrotada, mas vitoriosa no campo da cultura, foi mais uma vez gestado no âmbito de um movimento internacional. Agora, tratava-se das rebeliões estudantis de 1968 e das consequências da contracultura; instrumentalizadas por um avatar da perfídia comunista: entra em cena o espectro do “marxismo cultural”, propagado pela pregação de Olavo de Carvalho e sua monomania da Casa Verde: o fantasma do globalismo.
Um passo atrás para discutir os eixos narrativos do filme. O plural se impõe pela complexidade de sua articulação. Há pelo menos cinco ou seis gradações que convergem numa interpretação global do período 1964-1985. Tal interpretação favorece o modelo da guerra cultural infelizmente em curso e que, levada adiante na marcha da insensatez bolsonarista, tem provocado uma autêntica arquitetura da destruição, que conduzirá à paralisia de áreas essenciais da administração pública — exatamente o que ocorre de forma dramática com o Ministério da Educação, o mais importante ministério da República, que nada fez de efetivo para responder à tragédia que assola o país com a peste da covid-19.
(E o que dizer de mais de 100 mil mortos na ausência de um ministro da Saúde efetivo? Por que uma metáfora tão cruel e absurda de uma indiferença tão abjeta e criminosa?)
Eis o eixo inicial, tal como proposto pelos realizadores do filme: o movimento militar de 1964 foi o resultado de uma demanda civil pela restauração da ordem pública e pela ameaça de implantação de uma ditadura comunista no país. Portanto, em lugar de golpe, destaca-se a ideia de revolução ou de contrarrevolução.
(Não se entusiasme: é claro que os produtores da Brasil Paralelo desconhecem a obra de Dreifuss.)
Segundo e terceiro momentos: a linha dura do Exército meteu os pés pelas mãos ao não realizar as eleições em 1965; prorrogando o mandato do marechal Castelo Branco até 1967. A ascensão do marechal Artur da Costa e Silva e sobretudo a promulgação do AI-5 são vistas como aspectos francamente negativos. Aqui, realiza-se uma clara crítica ao regime militar. Vale reconhecer: o documentário não apoia a ditadura e condena explicitamente a tortura.
Quarto instante: a ditadura, especialmente durante o governo do general Emílio Garrastazu Médici cometeu um erro estratégico fundamental, que apenas foi ampliado no quinto momento, constituído pelo processo de abertura dos governos Ernesto Geisel e João Baptista Figueiredo. Eis (e dessa interpretação se alimenta a guerra cultural açulada pelo grupo bolsolavista): os militares se contentaram em derrotar a esquerda militarmente, porém não se ocuparam em inviabilizá-la culturalmente.
Chegamos ao sexto e último instante narrativo — e essa simples enumeração revela a sofisticação da forma (muito embora o conteúdo seja dominado por um maniqueísmo constrangedor): o campo da esquerda assimilou a derrota da guerrilha armada por meio da importação de uma conspiração de proporções planetárias: o marxismo cultural, através do estudo da obra de Antonio Gramsci.
(Claro! É risível associar Gramsci ao gelatinoso marxismo cultural; porém, para entender a lógica paralela do bolsonarismo, reconstruo suas premissas.)
Mas será assim?
Voltamos ao subtítulo: O Brasil entre armas e livros. A ditadura triunfou no território das armas, mas, sem um entendimento apurado da dinâmica das forças mundiais nas décadas de 1960 e 1970, cedeu terreno na área da cultura, o que se revelou um erro decisivo. Por isso, a corrente cultural do bolsonarismo — denominá-la ideológica não é preciso, uma vez que nenhuma corrente política pode deixar de sê-lo — considera que o triunfo eleitoral importa muito menos do que a razia prometida nas instituições de ensino, no mundo do entretenimento, na esfera pública como um todo, aí incluindo especialmente a mídia. Nesse sentido, recordam as revoluções fundamentalistas que se interessam muito pouco pela administração da coisa pública e, pelo contrário, se imiscuem indiscretamente em todos os domínios da esfera privada. E isso com base numa intepretação delirante do marxismo cultural, como sugeri.
Eis o que se afirma, com uma trilha sonora sombria: “O fundador do Partido Comunista Italiano passa a escrever os Cadernos do cárcere, onde relata que a estratégia marxista deve ocorrer no meio cultural, destruindo todos os valores, a moral, a família, a religião e a família”.
Esqueçamos a redação pouco elegante — “onde relata que” — e nos concentremos na manipulação de dados. Gramsci não “passou a escrever” os Cadernos do cárcere espontaneamente: ele foi realmente encarcerado de 1926 a 1934, falecendo três anos depois em virtude das condições a que foi submetido na prisão. Confundir o conceito e a prática de hegemonia com a “destruição” acima de tudo e de todos é, do ponto de vista filosófico, o mesmo que imaginar que um colar de palavrões equivale a uma argumentação de peso.
Sim, você tem razão; no fundo, a tarefa da produtora Brasil Paralelo é difundir para dezenas de milhões de brasileiros o sistema de crenças Olavo de Carvalho. Se não entendermos o propósito, como desarmá-lo?
E a bomba pode explodir a qualquer momento.
(Olhos bem abertos: pode vir o tempo negro e, à força, fará conosco o mal que a força sempre faz.)