Havia-me comprometido, colunas atrás, a falar sobre tradução e budismo. As grandes religiões, assim como as grandes literaturas, muito devem à tradução. O budismo tem uma dívida muito particular, contudo, pois, na condição de religião transplantada — tendo virtualmente desaparecido de sua terra natal — teve na tradução instrumento não só de difusão, mas de pura sobrevivência.
A primeira tradução da literatura budista, porém, não foi de natureza interlingüística. Foi algo mais fundamental: a consolidação do texto oral em texto escrito, fato que teria ocorrido talvez ali por volta do primeiro século antes da era cristã. Ou seja, apenas séculos após a morte do Buda histórico é que os primeiros textos do chamado cânon budista foram escritos. Durante séculos, confiou-se puramente na transmissão oral. A primeira tradução foi também a primeira blasfêmia: decadência da palavra sagrada que, tornada escrita, desprovida agora de alma, se pode copiar livremente. Havia naquela tradução original urgência de comunicação — que não é necessariamente evidente, por exemplo, na tradução literária. Ao sagrado, então, sobrepôs-se o comunicável. À incrível memória oral dos antigos sobrepôs-se a memória aparentemente fácil da tinta sobre o papel.
A sedimentação das escrituras budistas teria tomado tempo bastante longo e contado com o concurso de mais de uma língua “original”. Parte dos textos teria sido escrita em páli, mas outra parte pode ter sido já redigida diretamente em chinês, a partir de tradição oral em sânscrito — ou mesmo em outra língua da região. Em tal caso, teria havido, logo no início, uma dupla tradução (interlingüística e oral-escrita).
A tradução não só permitiu a sobrevivência do budismo, mas também funcionou — e funciona — como referência para a datação dos textos, especialmente no caso da literatura maaiana, prevalente na China e no Japão. De fato, hoje só é possível localizar tais textos no tempo com base na data em que foram traduzidos para outra língua.
Resultado de intenso trabalho coletivo — e inventivo — de gerações de tradutores, os escritos budistas maaianas inseminaram não só o pensamento religioso do extremo oriente, mas também sua literatura. Como no caso ocidental — em que a Bíblia funciona como matriz e referência —, as escrituras budistas têm funcionado como inspiração literária por séculos e séculos. Pode-se dizer, de fato, com Shen Fuwei (Cultural flow between China and outside world throughout history) que a escritura budista foi, ela mesma, criação literária de relevo.
Não é fácil traçar todas as relações — tangíveis e intangíveis — entre o trinômio religião-literatura-tradução. Parte relevante da primeira literatura teria tido função religiosa, e a tradução foi, desde o início, instrumento ao mesmo tempo maldito e indispensável — ruim com ele, pior sem ele. Instrumento de decadência, a tradução operava — com todo o seu efeito distorcivo — tanto no plano vertical (oral-escrita) quanto no plano horizontal (interlingüístico).
Não se sabe bem o que disse Buda, dois mil e quinhentos anos atrás — assim como não se sabe bem o que disseram outros tantos líderes religiosos. Louvável, contudo, é o rastro de literatura e tradução que legou — algo que se espraiou por terras e línguas tantas, como poucas tradições puderam fazer.
Ao longo desses dois milênios e meio, sobressai a capacidade da tradução de potencializar a transmissão da tradição e mesmo de formular nova literatura. Que a leia quem puder.