A tradução não é apenas um instrumento fundamental da ficção, do texto literário. É uma operação que depende em si de uma ficção: a possibilidade mesma de uma versão fiel, que consiga ao mesmo tempo decalcar a letra e a estrutura; e vazar perfeitamente o sentido original.
Trata-se de uma ficção, sem dúvida. Mas, sem ela, a tradução perde muito de seu poder quase mágico de iludir, ao passar a impressão de que a tradução representa de fato e legitimamente o original. Na verdade, é a crença arraigada na viabilidade de uma tradução perfeita que nos faz arriscar uma transversão imperfeita — e aceitá-la como real substituto do original, ainda que sempre provisório.
Esse poder ilusório talvez não transpareça tanto numa translação entre línguas próximas — por exemplo, entre espanhol e português; ou mesmo entre línguas que utilizam o mesmo alfabeto, como o inglês e o francês. Nesse tipo de tradução, a possibilidade de uma versão idônea e correta, se não literal, parece clara. Mas se transferimos o olhar para um par de línguas distantes, no tempo e/ou na afiliação linguística — como o japonês e o latim —, vemos nitidamente o delírio que se quer realizar. A realidade é cruel com os criadores de quimeras.
Essa nossa ficção tradutória vem sempre acompanhada de fricção. Fricção provocada pelas diferenças lexicais e gramaticais entre as línguas; pela distância temporal que separa original e tradução; pela distância tempo-espacial que divide autor de tradutor.
As fricções se exprimem em imperfeições diversas que se vão acumulando no texto traduzido, algumas vezes tratadas em notas de rodapé, para explicar as soluções propostas pelo tradutor diante de obstáculos incontornáveis; na maioria das vezes, dispersas anônima e caoticamente ao longo do tecido textual.
A ficção da tradução, contudo, se afirma naturalmente como a única possibilidade de contato real entre os textos, como espécie de canal comunicante que não só transvaza o fluido textual, mas retém parte dele, sintetiza novos elementos e, finalmente, o transverte em nova escritura. E essa nova escritura vigerá sob regras específicas, vinculadas à gramática da língua de chegada, aos consensos que se formam em torno dos múltiplos sentidos do original, à prevalência de estilos e modas linguísticas contemporâneas.
Nada disso — nem a ficção nem as fricções — opaca o valor da tradução e sua plena utilidade na construção da ficção moderna ou de qualquer tempo. Apenas esclarece o modo como opera a tradução, as perdas naturais que implica, os saltos que forçosamente tem que dar. Tampouco enfraquece a necessidade de buscar identificar os limites daquilo que o original — e a densa memória nele recolhida — autorizaria como tradução legítima.
Também faz parte dessa nossa ficção tradutória, entendida como processo não mecânico mas criativo, esforço para não emparedar o pensamento nem as potencialidades da interpretação, a fim de dar vazão o mais plena possível ao texto vivo e vivificante.
A ficção se revela quando se torna difícil registrar sentidos que mal resvalam na pele das palavras, sem se fixar nela; quando se nota que se vão afrouxando as fibras que ligam significados à letra; quando se percebe que o original se desdobra todo em interrogações.
É aí que entra, com mais clareza, o papel do tradutor como criador de um novo texto. É aí que a tradução se apresenta mais claramente para o original como promessa de fazer sentido.