Tradução na Ilíada

São vários os idiomas que atravessam a obra de Homero
31/12/2019

A Ilíada é uma torrente de palavras que nos chega das brumas densas e turvas da lenda. Milagre da tradução, traz-nos palavras aladas do passado, que ressoam através de toda a literatura ocidental. Como ainda nos chegou tanto e de tão longe, de passado tão remoto?

Foram certamente muitos os processos tradutórios que a trouxeram até o presente, inscrevendo-a no acervo do português brasileiro. Começo pelo fim: a tradução do brasileiro Carlos Alberto Nunes, diretamente da matriz grega. Esta, certamente, foi objeto de longo processo de tradução e edição, desde sua gênese oral, por volta do século 13 a.C., até sua fixação escrita — mais ou menos estável — por volta do século 8 a.C. As datas, claro, são meramente estimadas.

Do século 8 a.C. até a tradução de Nunes (c. 1945), o texto viveu sua própria epopeia, cruzando mares, idiomas, culturas, continentes — atravessando a dura barreira do tempo. Para trás, antes do século 8 a.C., o texto nasceu e viveu no terreno da oralidade, recitado de memória por gerações de vates e populares.

Quem saberá quem foi Homero, se é que existiu alguém com esse nome? Quem saberá qual o original da Ilíada? A vida e o texto são suficientemente maleáveis para acomodar todas as possibilidades, inclusive a não existência de Homero ou sequer de um único original de sua grande obra.

Mas esta não é ocasião para entrar na Questão Homérica. Fiquemos com as palavras e as línguas: “Muito flexível é a língua dos homens, mui rica em discursos de toda a espécie, que para as palavras o campo é infinito” (Canto 20, 248-249). O trecho é dito por Eneias a Aquiles, em meio ao duelo que travam os dois heróis, um troiano, outro grego. Uma saborosa reflexão sobre a elasticidade da linguagem antes do prélio duro das lanças. Eneias e Aquiles poderiam ficar ali horas trocando insultos, em línguas provavelmente distintas, mas urgia partir logo para a luta.

E a peleja envolvia gente de toda espécie, de todos os cantos, de todas as nações, de todos os idiomas. São vários os idiomas que atravessam a Ilíada. O campo troiano, em particular, era uma Babel: “Não era idêntico o acento; a palavra também diferia; línguas diversas falavam pois vinham de troncos variados” (Canto 4, 437-438).

A deusa Íris, preocupada com a correta compreensão das instruções dos comandantes, recomenda ao herói troiano Heitor: “Muitos aliados se encontram na grande cidade de Príamo de diferentes países e línguas de vária estrutura. Que cada grupo receba instruções de seus guias nativos que hão-de saber coordená-los e à guerra depois conduzi-los” (Canto 2, 803-806).

Eis aí o crucial papel dos tradutores na longa guerra de Troia, exposto pela ágil mensageira dos deuses. Os guias nativos deveriam trasladar corretamente a orientação central aos seus comandados, para evitar desorganização que poderia levar os troianos à derrota precoce.

A Ilíada é uma intensa e volumosa torrente de palavras, que tem como tributários muitas línguas mortas. O “original” que me chega aos olhos — tradução que já carrega décadas nos ombros — é suficientemente imponente para pairar soberana sobre nossa literatura.

Recuperando frase de Kant, inscrita no texto de Nunes sobre a Questão Homérica: “Só compreendemos o que construímos”. Mas, como sugere Nunes, a construção depende de processo analítico anterior que nos permita “tentar surpreender os mistérios, em nosso íntimo, da própria gênese da poesia”. Para tanto, só mesmo traduzindo. Que outro instrumento nos permite criar tamanha intimidade com o texto?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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