A imprudência
Na última coluna, recordei o espanto de Bento Santiago diante do drama do mouro, cujo acicate pareceria antes um puro nada: “— um simples lenço!”. Como se sabe, Otelo nele se enredou, assim como Dom Casmurro se encontrou à deriva depois de supor “algumas lágrimas poucas e caladas…”, vertidas por Capitu no velório de Escobar.
(Você pode verificar: releia o capítulo CXXIII, Olhos de ressaca” e veja se não tenho razão.)
Pois bem: “— um simples lenço!”.
Contudo…
Retornemos à reconstrução da textualidade shakespeariana.
Sem dúvida, o lenço constitui um elemento decisivo, mas apenas num contexto dominado pela imprudência de Miguel Cássio e pelo capricho de Desdêmona.
Começo por aquela.
Geralmente representado como um personagem nobre, vítima da vilania do alferes, no fundo, pelo menos no que se refere à vida amorosa, Miguel Cássio é um vulgar kiss and tell, e somente por isso a trama imaginada por Iago torna-se verossímil.
Vejamos.
Na primeira cena do segundo ato, Cássio chega à ilha de Chipre no primeiro navio; logo depois, será a vez de Iago, Emília e Desdêmona. Por fim, e sintomaticamente, o navio de Otelo será o último a alcançar o porto — não mais seguro, o leitor começa a desconfiar.
Eis como o futuro comandante da ilha apresenta a mulher do mouro, seu superior hierárquico:
Por sorte;
traz uma esposa que ultrapassa toda
descrição e alta fama … [1]
No entanto, homem cheio de recursos, arrisca-se a defini-la numa única palavra: “a divina Desdêmona”. Surpreso, Montano, ainda chefe militar de Chipre, parece não entender a loquacidade de Cássio:
MONTANO: Quem é ela?
CÁSSIO: A de quem vos falei, a capitoa
de nosso capitão. (…)
Não sejamos tão rigorosos. Talvez o florentino apenas expressasse um entusiasmo inócuo; afinal, como ele diz ao ver a divina Desdêmona:
Possa diante de ti ficar a Graça
celestial, por detrás, por toda a parte,
envolvendo-te toda. (621)
Mas o que dizer da efusão de Cássio ao ver Emília?
Recorde-se a cena:
Bem-vindo, bom alferes. (A Emília). Vós, senhora,
também sois mui bem-vinda. Que não seja
causa de se enturvar vossa paciência,
bondoso Iago, a extensão dos meus saudares.
É minha educação que me confere
saudações de tamanho atrevimento. (621)
A indicação de cena é reveladora: Beija a Emília. O alferes tinha toda razão em seu juízo cirúrgico sobre o comportamento do rival:
(…) O exterior de Cássio.
e seu todo insinuante o predispõem
a tornar-se suspeito facilmente.
Foi feito para seduzir mulheres. (619)
E, sobretudo, para vangloriar-se de suas conquistas. É o que ocorre na primeira cena do quarto ato — o momento-chave para a resolução de Otelo.
O truque é tão fácil que constrange. Iago não tem nenhuma dificuldade em fazer Cássio falar com grande liberalidade de seu relacionamento com Bianca. A cortesã irrompe em cena, involuntariamente colaborando para o enredo de Iago, pois Otelo a escuta:
Que o diabo e sua mãe vos persigam! Que pretendeis fazer com aquele lenço que me deste há pouco? (…) É presente de alguma sirigaita, e eu ainda terei de copiar o modelo! Pois aqui o tendes; dai-o à vossa queridinha. (644)
Você me acompanha: o lenço pouco vale em si mesmo, porém adquire peso considerável na situação engendrada pela imprudência de Miguel Cássio. Imprudência corroborada por um lance de sorte: o aparecimento de Bianca. Isto é, um lance de dados que favorece os planos de Iago; agora, Otelo tem bons motivos para acreditar na evidência oferecida pelo alferes. E não por ser um ciumento pouco razoável, mas porque, nessa cena, o lenço esteve diante de seus olhos.
O capricho
E não é tudo.
Um pouco antes desse desfecho, Otelo procurara Desdêmona, a fim de averiguar a veracidade da história contada por Iago. Após encarecer a importância do objeto-chave da peça:
Tomai cuidado, pois, e o tende sempre
como joia tão cara quanto os olhos.
Perdê-lo ou dá-lo a alguém fora desgraça
de proporções incríveis. (639)
Otelo vai direto ao ponto, vale dizer, direito ao lenço:
OTELO: Então, trazei-o aqui; desejo vê-lo.
DESDÊMONA: Ora, senhor; faria se o quisesse;
mas não agora. (…)
A jovem veneziana ainda confia em sua força junto ao mouro: por isso, bate o pé como a adolescente voluntariosa que ainda é: somente atenderá o pedido de Otelo quando assim o desejar.
Nem um minuto antes — claro está.
No fundo, Desdêmona precisava mesmo ganhar tempo.
Porém, se o propósito era legítimo, o passo seguinte foi temerário:
DESDÊMONA: (…) Vejo que isso é um meio
para que eu não vos faça meu pedido.
Por obséquio, chamai de novo Cássio.
OTELO: Ide buscar o lenço; meu espírito
pressente algo funesto.
DESDÊMONA: Vamos, vamos;
não achareis ninguém mais competente.
OTELO: O lenço!
DESDÊMONA: Por favor, falai de Cássio.
OTELO: O lenço!
DESDÊMONA: Uma pessoa que durante
toda a vida fundou sua fortuna,
sobre vossa amizade e sempre esteve
nos perigos convosco.
OTELO: O lenço, digo!
DESDÊMONA: Sois digno de censura.
OTELO: Fora, fora! (639-640)
Furioso, o mouro sai de cena e, ao retornar ao palco, verá o lenço nas mãos de Bianca. Ao vê-lo nesse estado, Emília pergunta, não sem uma ponta de ironia:
Então esse homem não será ciumento? (640)
Não necessariamente — você pensa; afinal, as circunstâncias parecem confirmar as insinuações do alferes.
Portanto, os caprichos de Desdêmona precisam ser incluídos na equação.
Um passo atrás, aqui, se impõe.
Ora, após prometer a Cássio assumir sua defesa, a jovem talvez tenha levado o compromisso um ponto além do necessário.
(Ou dois. Ou três. Muitos, de fato.)
No mínimo, não chegou a temperar sua vontade imperiosa, pois, a partir do terceiro ato, passa toda a peça bombardeando o marido com o nome de Cássio:
DESDÊMONA: (…) Chama-o, caro!
OTELO: Mais tarde, agora não, cara Desdêmona.
DESDÊMONA: Mas será logo?
OTELO: Logo que possível,
minha querida, já que assim desejas. (631)
Batalha ganha! Porém, acostumada a ter seus desejos imediatamente atendidos, Desdêmona volta à carga:
DESDÊMONA: Hoje de noite à ceia?
OTELO: À noite, não.
DESDÊMONA: Então, amanhã cedo, à hora do almoço?
OTELO: Não estarei em casa amanhã cedo;
almoçarei com os capitães no forte.
DESDÊMONA: Quando? Amanhã à noite? Ou terça-feira
pela manhã? ou à noite? ou quarta-feira
cedinho? Por obséquio marca a data;
contanto que não passe de três dias. (631-632)
A veemente “Apologia de Cássio” prossegue por longas 16 linhas e só é interrompida pela impaciência (ou devo dizer: surpresa) do mouro:
Por favor, não prossigas. Pois que venha.
quando bem entender; não te recuso
coisa nenhuma. (632)
Guerra vencida, pois. E mais uma vez. Desdêmona, contudo, não é de contentar-se com pouco:
Ora, isso não é graça;
(…) Não, se vos faço algum pedido, para
pôr vosso amor em prova, será sempre
de muito peso e mui penoso fardo,
de grave concessão. (632)
É nesse cenário que Iago principia a colocar em prática seu “plano B” — o projeto original do alferes era pular na sela do mouro, fazer o seu trabalho em seus lençóis. Não alcançando a ventura, Iago deseja saber mais sobre Miguel Cássio; na verdade, busca projetar na fantasia de Otelo um triângulo perturbador: o florentino privara do convívio de Desdêmona antes de virem todos à ilha de Chipre? O mouro respondeu sem titubear, como todo homem confiante; excessivamente confiante, talvez. Em suas palavras:
Oh! Conhecia!
Muitas vezes serviu de intermediário
entre nós dois. (632)
(Você pensa em Escobar, desempenhando idêntico papel de mensageiro junto a Capitu. Você tem razão, mas espere um pouco; a leitura de Conto de Inverno guarda surpresas ainda maiores.)
O poder da evidência
Se minha leitura pode ser considerada fecunda, então, é preciso rever o estatuto da evidência em Otelo. O mouro dispôs de indícios razoáveis — a imprudência de Miguel Cássio e o capricho de Desdêmona. Isso para não mencionar as evidências “diretas”: o lenço em mãos de Bianca e o discurso do florentino relatando suas aventuras eróticas.
Outra vez: não é tudo.
Na primeira cena do quarto ato, Otelo escutou a seguinte resposta de Desdêmona à pergunta de seu primo Ludovico sobre o rompimento do mouro com seu ex-tenente:
Muito de lastimar. Daria tudo
para reconciliá-los, pelo afeto
que dediquei sempre a Cássio. (645)
Na sequência da cena, o cenário torna-se mais sombrio. Ludovico anunciou uma decisão que dificilmente o mouro poderia tolerar:
(…) ordem lhe veio de ir para Veneza,
deixando Cássio, aqui, no lugar dele.
Desdêmona, como se ignorasse o efeito que a notícia produziria em seu marido, alegrou-se, como a boa advogada de defesa que nunca deixou de ser do florentino:
Isso me alegra, podeis crer-me. (645)
Você já sabe aonde quero chegar: ao contrário do que sempre se disse, Otelo foi exposto a uma sucessão nada desprezível de “evidências”; seu comportamento, portanto, nada tem a ver com qualquer tipo de descontrole causado por um ciúme obsessivo.
Hora de seguir adiante.
Na próxima coluna, examinarei Cimbelino.
(Não deixe de reler a peça — como sempre.)
[1] William Shakespeare. Otelo. Teatro Completo. Tragédias. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Agir, 2008, p. 620. Nas próximas ocorrências, indicarei apenas o número de página.