Quero um chefe brasileiro
Fiel, firme e justiceiro
Capaz de nos proteger,
Que do campo até à rua
O povo todo possua
O direito de viver.
Quero paz e liberdade
Sossego e fraternidade
Na nossa pátria natal
Desde a cidade ao deserto,
Quero o operário liberto
Da exploração patronal.
Quero ver do Sul ao Norte
O nosso caboclo forte
Trocar a casa de palha
Por confortável guarida,
Quero a terra dividida
Para quem nela trabalha.
Eu quero o agregado isento
Do terrível sofrimento,
Do maldito cativeiro,
Quero ver o meu país
Rico, ditoso e feliz,
Livre do jugo estrangeiro.
A bem do nosso progresso,
Quero o apoio do Congresso
Sobre uma reforma agrária
Que venha por sua vez
Libertar o camponês
Da situação precária.
Finalmente, meus senhores,
Quero ouvir entre os primores
Debaixo do céu de anil
As mais sonorosas notas
Dos cantos dos patriotas
Cantando a paz do Brasil.
Em março de 2019 completam-se 110 anos do nascimento de Patativa do Assaré, apelido que Antônio Gonçalves da Silva adotou, desde os vinte anos, a partir de sugestão de amigo que sentiu na voz do poeta cearense, da cidade de Assaré, algo do canto fino e melodioso do pássaro patativa. Tendo vivido até os 93 anos, Patativa construiu uma grande obra ao estilo de cordel, de teor portanto oralizante (escreveu também excelentes sonetos, feito Mal de amor, A sorte do Joli, Cousa estranha). Morreu em sua cidade natal, e manteve ao longo da vida, em paralelo às atividades poéticas, seu trabalho de agricultor, herdado do pai. Recebeu muitas homenagens, inclusive alguns títulos de doutor honoris causa, sendo gravado por cantores como Fagner e Luiz Gonzaga. Sobre sua obra há um bom número de estudos e documentários, mas, dada a sua dimensão, ainda insuficientes.
O poema Eu quero possui clássico esquema cordelista, com estrofes de seis versos e versos setissílabos. Todas as seis sextilhas se estruturam rigorosamente no esquema rímico AABCCB. Todas as rimas são consoantes e todas as estrofes perfazem um período completo, sintática e semanticamente (vide o ponto final que arremata cada estrofe). Essa regularidade métrica, a cadência rítmica, os sons facilmente palatáveis ao ouvido (rimas consoantes), os versos relativamente curtos e a sintaxe bastante linear, tudo isso colabora para que o poema, mesmo escrito, tenha a força encantatória de um poema falado. (Na internet encontra-se o próprio Patativa recitando Eu quero.)
Tal engenharia formal dá uma aparência de simplicidade ao poema. Todavia, tantas normas demonstram que nenhum elemento pode escapar à complexidade do conjunto (métrica, rima, fraseado constantes). Na prática, o leitor/ouvinte, pacificado pela regularidade, pode se entregar a entender o “conteúdo” do que tem à vista. Como afirma Terry Eagleton, em Cómo leer um poema, “los poemas hacen cosas en nosotros de la misma manera que nos dicen cosas; son acontecimentos sociales a la vez que artefactos verbales”. E de que acontecimentos sociais nos diz o poema de Patativa? Em síntese, fala de problemas do Brasil dos anos 1970 — que, no entanto, perduram em tempos de hoje.
Estrofe a estrofe, o poema pede uma vida sem violência e sem discriminação [estrofe 1], fala de direitos iguais para campo e cidade e manifesta consciência da luta de classes [2], defende moradia digna e reforma agrária [3], vai de encontro ao (neo)colonialismo e à exploração do povo [4], solicita apoio político e denuncia a pobreza do camponês [5] e, por fim, retorna ao desejo de paz em tom altamente ufanista [6]. Para conduzir todo esse processo de transformação e melhoria social, para o povo brasileiro, Patativa imagina, desde o primeiro verso, que há necessidade de um “chefe brasileiro”: “Ele se dirige aos chefes de governo, exigindo uma melhoria de vida para o camponês. A obra de Patativa tem dimensão social, é a vida do outro que o poeta leva em conta”, comenta Maria do Socorro Pinheiro em sua dissertação (UFC, 2006).
Essa perspectiva de que um grande líder, messiânico e/ou populista, há de levar a nação e o povo adiante, como a história e as ciências sociais nos ensinam, é não só retrógrada como ilusória e ineficaz. Mitos não resolvem nada; ao contrário, como temos visto, podem levar o país para o brejo, tamanho é o obscurantismo cultural de que se revestem (obscurantismo de potência bem maior do que a “semiformação” de que tanto fala Theodor Adorno). Mas Patativa não é historiador nem cientista social, é um poeta que, semiletrado, sente e expressa as agruras do povo que representa. No livro Cante lá que eu canto cá — filosofia de um trovador nordestino, de 1978, onde se encontra o poema Eu quero, há uma Autobiografia em que o poeta diz, com contundência: “Não tenho tendência política, sou apenas revoltado contra as injustiças que venho notando desde que tomei conhecimento das coisas, provenientes talvez da política falsa, que continua fora da verdadeira democracia”. O poema e o depoimento, por mais que digam respeito ainda aos dias de hoje, testemunham com nitidez o tempo de então: nos anos de 1970, a ausência de democracia e justiça inspira, sem dúvida, o sentimento de revolta que toma conta do poema e, ademais, de grande parte de sua obra.
Em Aos poetas clássicos, que abre a antologia de 1978, Patativa se apresenta, em irônico contraste com os poetas “clássicos”: “Poetas niversitário,/ Poetas de Cademia,/ De rico vocabularo/ Cheio de mitologia;/ Se a gente canta o que pensa,/ Eu quero pedir licença,/ Pois mesmo sem português/ Neste livrinho apresento/ O prazê e o sofrimento/ De um poeta camponês”. Já numa das estrofes do poema seguinte, O poeta da roça, Patativa será ainda mais incisivo: “Eu canto o mendigo de sujo farrapo/ Coberto de trapo e mochila na mão,/ Que chora pedindo o socorro dos home,/ E tomba de fome, sem casa e sem pão”. Fica bem claro que Patativa não faz mediações: o poeta ora se define como camponês que, “mesmo sem português” (isto é, supostamente sem dominar “a gramática do professor e do aluno e do mulato sabido” — Oswald), vai se dedicar a entender o prazer e o sofrimento dos menos favorecidos; ora se define como poeta da roça, “cantô da mão grossa”, “fio do pobre”, que vai falar “as verdade das coisa do Norte”. Entre os traços que caracterizam a chamada literatura de cordel, em Eu quero destacam-se dois: a crítica social e política, e o teor didático e educativo. Há uma evidente vontade de alcançar, por empatia, os pares (camponês, operário, mendigo — o povo), e de forma atraente, às vezes engraçada, objetiva e clara fazê-los pensar sobre a situação oprimida que os envolve. É uma poesia, a um tempo, engajada e de entretenimento.
A poesia de Patativa adverte que, no vasto mundo da lírica, há de tudo um muito, desde o “poeta universitário” até o “poeta da roça” (entre ambos, um leque imenso). O escritor cearense, e Eu quero é prova e mostra, dedicou voz e versos a falar do “direito de viver”, de “paz e liberdade”, da “exploração patronal”, da “terra dividida”, do “maldito cativeiro”, do “jugo estrangeiro”, da “reforma agrária” e de tantas questões prementes que atingem o “povo todo”. Conhecer sua obra é um caminho para investigar as mazelas de um Brasil que, há décadas, perpetua abismais diferenças sociais e econômicas. Em tempos de treva, ler a poesia desse trovador nordestino ajuda a esclarecer quem somos e como agimos diante de tanta desigualdade, que se evidencia no título e na poética de Cante lá, que eu canto cá: “Você teve inducação,/ Aprendeu munta ciença,/ Mas das coisa do sertão/ Não tem boa esperiença./ Nunca fez uma paioça,/ Nunca trabaiou na roça,/ Não pode conhecê bem,/ Pois nesta penosa vida,/ Só quem provou da comida/ Sabe o gosto que ela tem”. Para Patativa, se vê, há uma vida real, bem penosa, que inspira a feitura de seu verso popular, verso que deseja o aqui e agora. Avesso ao lá, que afasta leitor e mundo, o verso que Patativa quer e faz tem o gosto de cá, gosto grande de roça e sertão.