Rumo à alma do texto

A substância da alma do texto, quando inscrita na tela ou no papel, deixa de identificar-se consigo mesma
Cecília Meireles, autora de “Romanceiro da Inconfidência”
30/03/2019

Cecília Meireles dizia que não estudava idiomas para falar, mas para melhor penetrar a alma dos povos. A tradução é um dos instrumentos para penetrar a alma do texto e, como diria C. M., também a alma dos povos. Afinal, no âmago de um povo certamente figuram sua língua e os textos nela produzidos.

Embrenhar-se na alma implica atravessar toda a espessura do texto, toda a espessura de seus sentidos, a fim de entendê-lo integralmente. Ou, pelo menos, entendê-lo o mais possível. Implica mergulhar para ver os significados mais profundos, mas também para tentar perceber o sulco deixado no texto por sentidos de outrora.

Infiltrar-se na alma do texto ou de um povo não é lá tarefa muito fácil. Cecília Meireles investia no estudo para fazê-lo; e depois para traduzir, para entregar um pouco dessa alma a um novo conjunto de leitores.

O caminho que leva à alma do texto é cheio de armadilhas e arcanos. Talvez haja aí também algo de mistificação. De exaltação de um campo que não se consegue bem definir; de um campo que, mesmo intimamente definido, não se consegue bem explicar ou traduzir aos outros.

De qualquer modo, o texto que vem da alma e do coração é o puro texto, verdadeiro e coerente. Provém diretamente da Fonte. Recorro, aqui, à Gramatologia, de Jacques Derrida, em que se lê interessante contraposição entre o texto bom, advindo do coração; e o texto artificioso, contrafeito pela técnica e exilado “na exterioridade do corpo”.

É nessa exterioridade que ocorre espécie de purgação ou filtração de significados. É nessa esfera, afinal, que o tradutor pode operar suas manobras, em busca de todas as possíveis inflexões dos sentidos, construindo as lembranças inventadas que vão desaguar em novo texto. Não há por que culpar o tradutor, instigado que é pela urgência do momento e pela envergadura intimidante da tarefa.

Talvez seja de fato uma ilusão querer penetrar na alma do texto; ou mesmo na alma de um povo. Ilusão como objetivo alcançável, mas certamente não como esforço sincero em busca de conhecimento menos superficial.

Seja como for, a alma de um texto, ou sua expressão mais pura e arquetípica, precisa ser reduzida ou até desnaturada em algum grau para encontrar expressão inteligível e transmissível. Não parece haver como fugir disso. A substância da alma do texto, quando inscrita na tela ou no papel, deixa de identificar-se consigo mesma.

É preciso, então, injetar um pouco de corpo nessa alma, seguindo mais ou menos a linha que Brenno Silveira propunha: “As ideias de um autor constituem a alma de uma personalidade literária — uma alma que, sem a corporificação, sem a manifestação visível, analisável, objetiva, de sua maneira de escrever, fica pairando sobre as páginas do livro como a sombra de um duende”.

Silveira apresenta essa corporificação como algo positivo, necessário para vazar no novo texto o estilo do autor — algo, sem dúvida, fundamental na escrita literária. Com outra visão, a “tradição logocêntrica” criticada por Derrida enxerga na alma a substância mesma que deve ser alcançada e preservada, sem as amarras e as deturpações de sua expressão exterior.

Num caso como noutro, há que vir o tradutor-demiurgo: aquele que detém autoridade para interpretar a alma e recriar o texto.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho