Lá pelas tantas páginas, diz Dom Quixote a Sancho Pança que sobre a língua têm poder o vulgo e o uso. De fato. Apesar de todo o esforço da elite cultural de uma língua qualquer, os rumos desta são ditados pelo vulgo e pelo uso.
A língua evolui assim, aos trancos e solavancos, insensível aos apelos dos puristas e dos gramáticos normativos. No fim das contas, a pequena elite letrada tem que se render às fartas — às vezes canhestras — modificações impostas pelo vulgo.
Na tradução, o processo parece mais controlado. Quem opera a tradução, supõe-se, tem conhecimento pelo menos minimamente suficiente da língua, que lhe permite circunscrever os desvios a certos limites. Há e sempre haverá exceções, contudo. Digo, sempre haverá tradutores aventureiros que extrapolam desbragadamente todos os limites razoáveis. Mas, no geral, é sensato admitir que a tradução se rege por normas mais rígidas do que aquelas que aplica o vulgo em seu uso — absolutamente legítimo, aliás — da língua.
Pode-se traçar diferenciação entre dois pares de atores e seus usos da língua. No primeiro par, estão a elite cultural e o tradutor, que tendem a guiar-se por padrões linguísticos mais rígidos e mais estáveis. No segundo par, figuram o vulgo e o leitor comum, que em geral tratam a língua de maneira mais ligeira e descompromissada — embora sejam eles os verdadeiros responsáveis pelos rumos que qualquer dada língua acaba tomando.
O desnível que proponho entre o tradutor e o leitor (supondo aqui o leitor comum ou médio) é o mesmo que parece existir entre a elite e o vulgo. Explico-me: o tradutor, diferentemente do leitor médio, tem que aplicar níveis superiores de atenção e conhecimento ao texto. Enquanto o tradutor faz da leitura processo profissional, mediado por pesquisa de contextos e significados, o leitor opera num patamar impressionista, interessado — quando se fala de textos literários — em extrair do livro algum tipo de prazer emocional, estético e/ou intelectual.
Essa é a diferença que transforma a leitura do tradutor num processo nem sempre prazeroso, porque orientado à compreensão mais cabal do texto e de suas sugestões, que serão inscritas na tradução, em outra língua. Ocorre, nesse processo, obrigatoriamente uma seleção de possibilidades, da qual o tradutor não pode escapar. Trata-se de sua principal responsabilidade: orientar o texto ao sentido que lhe parece mais razoável, levando em conta critérios estéticos, convencionais (convenções vigentes na língua, no país e na cultura aos quais é dirigida a tradução, entre outras) e editoriais (inclusive mercadológicos).
O tradutor não pode agir como o vulgo e o leitor médio. O vulgo tende a se deixar levar pelas regras da facilidade e da economia, enquanto o leitor médio, pelos fios e ritmos que trafegam sob o texto e direcionam a leitura superficial.
O tradutor, em sua condição de leitor especial, precisa agir sempre com desconfiança em relação à expressão fácil e econômica, pelo ceticismo ante o sentido mais óbvio e imediato.
De fato, a incredulidade deve estar sempre na mente do tradutor. Este deve sempre manter reserva de suspeição diante do texto, questionando as soluções simples.
Ao tradutor, cabe observar um antigo adágio, do tempo em que prevalecia a linguagem falada. Já não recordo sua proveniência e aplicação original. Não importa. Diz mais ou menos o seguinte: agora que os sons ganharam fio afiado, as palavras são usadas com muito mais cuidado. Os sons no ouvido, as palavras nos olhos do leitor. O gume amolado. Todo cuidado é pouco.