Assimetrias na tradução

A tradução como espaço de sagração do literário — o duplo com o qual o original se identifica e compete
Pascale Casanova, autora de República das letras
15/01/2016

Pascale Casanova reserva espaço qualificado para a tradução em sua A República das Letras. Talvez não seja óbvio esse espaço, para muitos. Mas ali está a tradução, como instrumento de literarização. A tradução como espaço de sagração do literário — o duplo com o qual o original se identifica e compete. O selo de garantia que se lhe apõe: “foi até traduzido”, “foi traduzido em tantas línguas” (segue a lista de idiomas, por ordem de importância econômico-cultural, para fins mercadológicos e como forma de significar o prestígio alcançado).

Casanova aponta a tradução como instrumento vital para a projeção de um texto e de seu autor — fundamental, especialmente, para autores localizados na periferia do sistema literário. E por periferia aqui se pode entender tanto a excentricidade econômico-geográfica quanto a baixa hierarquia cultural de uma dada língua.

Assim, para o autor que se expressa em língua periférica, a tradução pode significar a ponte para o reconhecimento mundial — e, muitas vezes, a chance de continuidade de sua carreira literária. A tradução não é simples mudança de língua, mas elevação de status. Não se trata de translação horizontal — num mesmo plano —, mas de movimentação vertical.

O significado econômico da tradução se expressa, em culturas periféricas, na introdução de forte elemento de competição para autores locais. O fenômeno é sentido com força no Brasil, onde a literatura traduzida ocupa amplo espaço e representa, naturalmente, estreitamento do campo para o escritor nacional. Um só leitor não pode ler dois livros ao mesmo tempo.

O campo literário nem de longe é nivelado. Há pouca horizontalidade aí. Não estamos na esfera linguística, mas em cancha de jogo bruto com armas sutis: a cancha do mercado da literatura.

De um primeiro ponto de vista (localizado no elevado patamar de uma língua de partida econômica e culturalmente forte), presenciamos o processo de “extradução”, em direção marcadamente vertical, ou pelo menos com acentuada inclinação. Aqui o tradutor e a tradução funcionam como vetores de inseminação cultural e transmissão de valores — para o bem e para o mal. É nessa “extradução” que, segundo Casanova, se opera a “difusão internacional de capital literário central”. O texto traduzido chega à língua-alvo carregando todo o magnetismo que projeta a potência literária. Não há aqui a busca de prestígio, mas de novos mercados e, muitas vezes, de afirmação da dominação cultural.

O apelo do estrangeiro em muitas culturas periféricas é acachapante. A avidez pela literatura dos grandes centros é evidente e inelutável. É nessa mesma direção vertical — mas, agora, do baixo ponto de vista de uma língua-alvo excêntrica — que se opera o que Casanova chama de “intradução”. A tradução que abre caminho para que uma língua mais pobre (em muitos sentidos) absorva, a seu modo (e o modo é muitas vezes crucial), as narrativas, o ferramental, as estruturas, os recursos linguísticos e literários de um idioma mais rico e de maior prestígio.

A língua de destino, claro, tem muito a ganhar nesse processo, pelo enriquecimento natural que provoca, mas, também naturalmente, há consequente redução de mercado para o autor local. Para este, muitas vezes, a redenção só virá na tradução para língua de maior influência. Virá pelo processo que Pascale Casanova chama de “literarização” — a elevação de um texto, escrito originalmente em língua excêntrica, para idioma de maior poder econômico e maior prestígio cultural. Eis aí o “certificado de literariedade”. Só com isso o autor encontra a consagração de seus escritos como legítima “literatura”, digna, até mesmo, de ser trasladada a outros idiomas menores.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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