Explorando cicatrizes textuais

O texto naturalmente deixa cicatrizes no leitor. Assim como imprime longas e rasas cicatrizes no papel
27/11/2015

O texto naturalmente deixa cicatrizes no leitor. Assim como imprime longas e rasas cicatrizes no papel. Na tradução, o grande afã de recuperar sentidos e cicatrizes, produzir as mesmas feridas, trabalhar para reativar as estrias de estesia e dor. Percorrer a fundo todas essas estrias em busca de algo que se pareça com a essência do texto: habilidade de detonar no leitor maravilhamentos.

Que nem brasa já seja, contanto que ainda guarde em si semente ou embrião de centelha. Lá no fundo dessas estrias, em movimento rasante, raspar o restinho de calor capaz de fazer renascer os fundamentos do literário. Já que a tradução correta mas insossa não será aceita, ou se o for, prestará desserviço aos pobres enganados. Arremedo de tradutor, pobre do leitor.

Do fundo de cada veio, garimpar faíscas que lhe permitam incendiar outra vez o texto, raiz de todo alumbramento. Daí basta perseguir o rastilho, seguir farejando a pólvora em seu sulco até o núcleo de detonação. Fazer disparar sentidos aos quatro ventos, em lenta mas duradoura profusão, como o fizera originalmente o texto primeiro. Se é que verdadeiramente o fizera.

Pois importa fazer que o texto seja muitas coisas numa só. Não um só caminho a seguir, mas rede de encruzilhadas que nos levem a distintas possibilidades. Teias de intricada significação ao dispor do tradutor criativo. Quem sabe, até, ampliar a teia, na tradução labiríntica. Brincando com o texto como no jogo da amarelinha, em que se dá ao leitor a possibilidade de escolher os rumos do texto (e mesmo, no limite, seu fim).

Para tanto, é preciso cruzar a linha do sentido mais estreito, explorando rotas semânticas que talvez nem mesmo o próprio autor, do alto de sua pretensa autoridade, tenha trilhado. Extrapolar meras sugestões, desenvolver mentalmente seu potencial antes de cristalizá-las no texto. Seguir nessas novas trilhas até o fim. Não é o caso de, deliberadamente, dar novos rumos ao texto: cristalização não é o objetivo, sob pena de real suspeita de traição. Nem é necessário ir tão longe. Basta espalhar algumas setas significativas. O resto fará o bom leitor.

Pois importa fazer que o texto seja muitas coisas numa só. Não um só caminho a seguir, mas rede de encruzilhadas que nos levem a distintas possibilidades.

Fará bem ao texto, quem sabe, algumas finas cesuras, capazes de fazer brotar dali veias mais vibrantes. Não se busque a desfiguração bruta, passando o bisturi a esmo. É trabalho de artesão do texto esse do tradutor. Convém manipular com prudência a lanceta. Fina incisão, nada mais, para tocar fibras pouco mais profundas do tecido textual. A energia que dali saltar será a alma do novo original, objetivo de toda tradução. Até que nem se pense mais em original, enterrado que ficou no passado, irremediavelmente irrecuperável.

Fina incisão que traga à flor do texto a mais tênue fibrilação. Tênue mas persistentemente significativa. Fibras vibrando erraticamente — como errática é muitas vezes a interpretação individual —, arrancando sensações a cada curta contração. Para deleite do leitor, no melhor dos casos, e desvario do antigo autor.

Há também aí todo um trabalho fagocitário, em que sentidos já necrosados são envoltos e digeridos para gerar novas luzes e novas estesias. Mastigar o texto, trazendo as fibras às pontas dos dentes, liberando significados contidos. A tradução, como sempre, incontrolável, mas sempre a serviço da senhora literatura.

Cabe à tradução, como leitura mais sofisticada de um texto, ativar ou reativar mecanismos de significação. Recuperar sentidos pendentes, engatilhados, que pareciam antes nunca exprimir-se de todo. Eis aí mais uma parte, nada mais que uma pequena parte, da tarefa do tradutor.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho