Nossa busca do auge no passado

Inegável que o auge do prestígio do texto se localiza no passado. Passado recente ou remoto, pouco importa. Não se trata de qualidade literária, mas de prestígio
30/09/2015

Inegável que o auge do prestígio do texto se localiza no passado. Passado recente ou remoto, pouco importa. Não se trata de qualidade literária, mas de prestígio. O passado do texto sempre parecerá ter sido melhor. A primeira edição. O original. O texto verdadeiramente histórico, a salvo de quaisquer interferências espúrias. E são tantas as possíveis interferências espúrias…

Daí a degradação que naturalmente se atribui à tradução, por mais esmerada e cuidadosa. A tradução como distorção tardia, no texto que se pretendia perdurar incólume. Alheio à passagem do tempo e mesmo à previsível indiferença futura dos leitores. Acima de tudo, haveria que mantê-lo sempre igual a si mesmo, como saíra da pena do autor.

De fato, é difícil resistir ao fascínio do original lido pela primeira vez. A sensação irrepetível de arrebatamento. O frescor do original e o ineditismo das primeiras sensações. Como descrever o êxtase da primeira leitura, que faz o leitor deixar o volume de lado para entregar-se à contemplação da originalidade em forma mais pura, densa e impactante? Como poderá a tradução competir com tamanho assombro?

O prestígio do original radica, em parte, no auge natural atribuído ao passado. Ao tradutor, cabe acreditar que o melhor ainda está por vir.

Caberia achar, no original, as ideias que de fato produzem tração. Destacá-las — como, talvez, o quis o próprio autor — e trazê-las para a ribalta. Restabelecer o modelar arranjo radial de significados, a fim de realçar o núcleo. Deter também o esfacelamento do texto, natural no desgaste de leituras e releituras. Pinçar sentidos capitosos que agitavam a malha do texto, para dar-lhes o brilho e a importância de antanho. Recuperar a pujança que só o original parece ter. Realizar, ao mesmo tempo, a mais justa adequação do texto ao novo ambiente.

Pois a tradução pareceria vertiginosa sucessão de ajustes em ambientes cambiantes. Cabe dar coerência aos ajustes, a fim de criar pontos de soldagem entre o original e a tradução: textos de mesma origem, com visíveis e sólidos vínculos entre si.

Original e tradução como vasos comunicantes, não compartimentos estanques. Original e tradução como textos que dialogam entre si. Textos entrosados. Textos que caminham juntos, às vezes lado a lado, sincrônicos, às vezes em lenta sucessão: a morte do original legando tradução. Tradução ganhando vida própria. No natural cotejo entre textos, aferir o grau de autonomia da tradução em relação ao original — sua maior ou menor (sã) infidelidade.

Na frieza da tradução, conter o calor natural do verbo — a tendência à digressão de toda língua — para fixá-lo em meras palavras escritas. Palavras que, ao mesmo tempo, não estiolem a riqueza de sentidos do verbo original. Palavras que não signifiquem a decantação dos mesmos velhos sentidos, tantas vezes já lidos, já de longe conhecidos. Surpreender a consciência em suspensão, à flor do texto, antes que se esfume, para retê-la em signos. Captar a imagem que percorre o texto, dando-lhe, com sua seiva, a própria natureza do literário. Milagres, nada menos.

Diante de tamanho esforço, natural a demanda por reconhecimento — que, em geral, não vem. Ao contrário, natural é o apagamento da tarefa do tradutor — como cansamos de ver na crítica de obras traduzidas.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho