Mancha
Na escada a mancha vermelha
que gerações sequentes em vão
tentam tirar.
Mancha em casamento com a madeira,
subiu da raiz ou foi o vento
que a imprimiu no tronco, selo do ar.
E virou mancha de sangue
de escravo torturado — por que antigo
dono da terra? Como apurar?
Lava que lava, raspa que raspa e raspa,
nunca há de sumir
este sangue embutido no degrau.
Este poema de Drummond parece andar esquecido pela fortuna crítica do poeta. Ele é o sexto poema da série Fazenda dos 12 vinténs, ou do Pontal, e terras em redor, do livro Boitempo, publicado em 1968[1]. Na primeira leitura já se entende o teor dos versos: trata-se da lembrança de um trauma histórico nacional, a escravidão. De que forma a memória, matéria-prima de Boitempo, se relaciona com o trauma? Márcio Seligmann-Silva aponta: “o trauma é caracterizado por ser uma memória de um passado que não passa. O trauma mostra-se, portanto, como o fato psicanalítico prototípico no que concerne à sua estrutura temporal”[2]. Sendo um passado que não passa, o trauma é, no entanto, atualizado a cada vez que, pela memória, vem à tona. Os traços nebulosos e lacunares do trauma ganham guarida no movimento da rememoração, também pleno de rasuras e incompletudes. O trauma rememorado se faz via linguagem, que tenta entender aquilo que, repetidamente, repele.
No poema, a mancha e o sangue são metáforas do trauma. Por isso mesmo, aparecem reiteradamente: antecipando sua relevância para o leitor, a “mancha” já se mostra no título, signo fundamental de qualquer obra; no primeiro verso, ganha a cor vermelha, que “gerações” tentarão, em vão, apagar; na segunda estrofe, a mancha está incorporada ao objeto (“em casamento com a madeira”), indicando sua força de permanência; na terceira estrofe, a suspeita se confirma: a mancha é de sangue e pertenceu a um “escravo torturado”, despossuído da terra; por fim, o poema afirma que o “sangue embutido” ficará, qual um trauma, para sempre: “nunca há de sumir”. A repetição de mancha e sangue se desdobra em “raspa que raspa e raspa”, expressão que, isomórfica, encena o que diz, pois a ação de raspar o sangue se multiplica na reiteração tripla do verbo e ganha reforço no som rascante do fonema /r/, que, oral e vibrante, faz com que se simule um arranhão que se perpetua — pela memória do poeta, pela história do país. Adriana Albano interpreta de forma similar este recurso: “A repetição dos vocábulos na última estrofe nos remete à impossibilidade de esquecer o passado do qual faz parte. O questionamento do eu poético assinala a necessidade de ‘apuração’, a preocupação em marcar que existem culpados que precisam ser punidos por seus crimes”[3].
Em contexto diverso, vale lembrar, a metáfora da “mancha de sangue” serviu a outro escritor em sua fabulação. No conto A mancha, de Luis Fernando Verissimo[4], o protagonista Rogério vive de comprar e revender prédios em ruína. Certo dia, ele pensa reconhecer o local em que, décadas antes, fora torturado. A pista, que desrecalca episódios duramente abafados em seu inconsciente, é exatamente a mancha de sangue que outrora, numa sessão de tortura, escorrera dele. Na sua busca por desvendar o passado traumático, é que o presente — cúmplice do autoritarismo político de então — vai se revelando. Rogério descobre que ninguém está interessado em revolver o passado. Como dirá uma antiga moradora, vizinha do prédio que, supostamente, servira de base policial: “Quem é que se lembra dos anos 70? Eu não lembro mais nada”. A memória, ou melhor, a ausência deliberada de memória é o sintoma mais visível da cumplicidade de certa parcela da população que, tacitamente, se calou, consentindo, diante das atrocidades da ditadura iniciada com o golpe militar de 1964. As “manchas” dos títulos apontam, assim, para a alegoria de um Brasil que, de um lado, tenta esconder — lavando, raspando — a sujeira que se espalhou por todo o canto, e, de outro, tenta entender o porquê de tanta sujeira, e talvez limpá-la (“apurar”), como quem exorciza um fantasma. A mancha, na escravidão do poema de Drummond ou na tortura do conto de Verissimo, é o trauma. Trauma, se recorde, vem do grego τραύμα e significa “ferida”, herança que toda barbárie humana imprime e embute, para usar expressões do poema, nas coisas e nas pessoas. Como escreveu Borges, não se pode abolir o passado[5].
Mas voltemos a Boitempo. E voltemos ao poema Negra, da série Pretérito-mais-que-perfeito: “A negra para tudo/ a negra para todos/ a negra para capinar plantar/ regar/ colher carregar empilhar no paiol/ ensacar/ lavar passar remendar costurar cozinhar/ rachar lenha/ limpar a bunda dos nhozinhos/ trepar./// A negra para tudo/ nada que não seja tudo tudo tudo/ até o minuto de/ (único trabalho para seu proveito exclusivo)/ morrer”. Como se sabe, Boitempo dá robustez à poesia memorialística de Drummond, que, desde Alguma poesia, elegeu a memória, a infância e a família como matéria de sua escrita. Como já indicaram alguns estudiosos de Boitempo, há aqui um híbrido de história social e de reminiscências individuais, que se misturam inextricavelmente. A trajetória de Drummond — crescido em ambiente rural, escravocrata e patriarcal, e indo para a cidade se tornar funcionário do Estado e “fazendeiro do ar” — diz muito de um processo de opressão que senhores brancos poderosos exerceram sobre uma multidão de negros escravos: “torturados” e mortos em Mancha, estupradas e coisificadas em Negra. O poeta adulto filtra, e agora fala, as lembranças do infante, “as lembranças bobocas de menino”, como registra em Intimação, um dos quatro poemas que abrem o livro. Com perspicácia, dirá Alcides Vilaça que “o menino fala pelo poeta, o poeta fala pelo menino (…) a maturidade se esclarece com a infância, a infância se reilumina na maturidade”[6]. Fala, esclarece, reilumina, mas isso não resolve ou repara o mal, não raspa o sangue ancestral.
Boitempo é um neologismo que reúne a ideia de ruminação à de memória. O poeta pensa o passado, que testemunha em versos. Theodor Adorno, no final de sua Teoria estética, diz que “valia mais desejar que um dia melhor a arte desapareça do que ela esquecer o sofrimento, que é a sua expressão e na qual a forma tem a sua substância”[7]. É exatamente isto que realiza o poema Mancha: não deixa esquecer a dor que fere a memória do menino e do poeta, que conspurca a história do país e dos opressores, dor e memória que se estendem ao leitor, mas, sobretudo, o poema apura e não deixa esquecer a dor, o sofrimento, a tortura, a morte de milhões de seres humanos que durante séculos foram barbaramente tratados como coisas, barbaramente destratados como escravos.
NOTA DO EDITOR
A coluna Sob a pele das palavras, do poeta e crítico literário Wilberth Salgueiro, será dedicada a analisar poemas brasileiros, buscando apontar neles algumas cifras e códigos que ali, a um tempo, se escondem e se expõem — privilegiando o diálogo entre história e forma.
[1] ANDRADE, Carlos Drummond de. Mancha. Boitempo. Carlos Drummond de Andrade – poesia completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006, p. 906.
[2] SELIGMANN-SILVA, Márcio. A história como trauma. NESTROVSKI, Arthur; SELIGMANN-SILVA, Márcio (orgs.). Catástrofe e representação. São Paulo: Escuta, 2000, p. 79 [p. 73-98].
[3] ALBANO, Adriana. “O pilão de pilar lembranças”: a retórica confessional na poética memorialista de Carlos Drummond de Andrade. Tese. Unesp – São José do Rio Preto, 2010, p. 127.
[4] VERISSIMO, Luis Fernando. A mancha. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. (Coleção Vozes do golpe)
[5] BORGES, Jorge Luis. Nathaniel Hawtorne. Outras inquisições – Obras completas, vol II. São Paulo: Globo, 2000. A frase de Borges é: “o propósito de abolir o passado já ocorreu no passado e – paradoxalmente – é uma das provas de que o passado não pode ser abolido. O passado é indestrutível; cedo ou tarde, todas as coisas voltam, e uma das coisas que voltam é o projeto de abolir o passado” (p. 50).
[6] VILLAÇA, Alcides. Poética da memória. Passos de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2006, p. 107-123.
[7] ADORNO, Theodor. Teoria estética. Tradução: Artur Morão. Lisboa: Edições 70, 2008, p. 392.