Quando a noite chega

Eu o vi cortar apressado a praça. No chafariz, os meninos de rua fingiam alguma felicidade. Era ele: o corpo magro, a cabeça grande, meio oval, o jeito serelepe de andar
Ilustração: Dê Almeida
31/08/2015

Eu o vi cortar apressado a praça. No chafariz, os meninos de rua fingiam alguma felicidade. Era ele: o corpo magro, a cabeça grande, meio oval, o jeito serelepe de andar. Estava careca, uma calvície precoce e luzidia. Não me viu. Ou fingiu. Ou, provavelmente, não me reconheceu. Nunca saberei. Seguimos em direção contrária. Um de costas para o outro. Cada qual com a urgência de uma vida distinta, sem qualquer ligação. Não éramos mais os meninos de dez anos de idade na escola pública de carteiras rabiscadas, evisceradas pelo estilete a esculpir cicatrizes na madeira. Não éramos mais os melhores amigos um do outro. Éramos homens ultrapassando o limite da última metade da vida que nos resta. Tínhamos pressa.

Quando nos despedimos, não houve choro. Houve espanto. Em breve, as férias escolares nos levariam para muito longe. Por volta dos 13 anos, eu iria estudar à noite e trabalhar o dia todo numa mambembe fábrica de móveis de bambu às margens da rodovia. Diante do parque onde muitos pisoteiam a pista de asfalto em busca de uma vida saudável. Estava preparado para ser homem, ajudar a manter a família. Éramos cinco — pai, mãe e três filhos. Tinha a opção de desistir. Da escola. Do trabalho, nunca. O irmão, um homem atarracado de 14 anos, não aguentou o repuxo. Abandonou a escola para passar a vida sobre telhados a colocar calhas e rufos. Segue por lá, nas alturas. Eu, acrofóbico, jamais ousei ultrapassar os limites da terra firme.

Descia cedo — o dia às margens do mundo — a ladeira no lombo da bicicleta azul. Sem freios, a sola do kichute em atrito com o pneu traseiro me protegia nas ladeiras. A infância passara muito rápido. Pulei a adolescência. A velhice me alcançou na juventude. À noite, a escola me esperava. Novos amigos notívagos, cigarro, álcool e a possibilidade do sexo me arrastavam para longe de uma sala de aula quase inóspita.

Meus amigos solares — crianças a brincar no pátio no recreio — ficaram para trás. Não nos víamos. Os novos interesses de quase adulto me seduziam. Tentei preservar os dois melhores amigos — uma menina loira de sobrenome italiano; e um menino magro de origem polonesa. Mas nunca fui bom em preservar amizades. No início, trocávamos cartas. Longas cartas em papel almaço. Aos poucos, as linhas se reduziram a míseras palavras. A caligrafia perdera o viço. A letra secara no deserto das noites infinitas. Um dia, transformaram-se em silêncio.

Ele ampara um menino nas bordas do balcão. O vendedor esparrama as centenas de opções de cores. Aos meus olhos daltônicos, tudo parece uma brincadeira de mau gosto, uma piada cujo final não entendo. A criança afaga os dedos da mãe. Uma pequena família de três pessoas. Talvez um cachorro os espere no portão de casa. Estou sozinho na seção de tintas. Tenho certeza de que ele notara minha presença. Temos 40 anos. Quase três décadas nos separam da infância de longas cartas em papel almaço.

A mãe acabara de morrer. Era necessário comprar tinta para pintar o interior da casa onde eu encontrara o corpo torto, mergulhado na solidão do fim, naquela manhã ensolarada de segunda-feira. A casa ganharia vida nova após a morte. Paredes derrubadas, pintura, móveis. Tudo em ordem para esperar o próximo cadáver.

Quando me aproximei do balcão, ele já estava lá. A poucos metros a careca luzidia. Era sábado. Olhei para a parede em frente, sem conseguir distinguir a cor. Ele parecia prestar atenção nas explicações sobre a tinta a ser comprada. O filho e a mulher eram bons coadjuvantes. O vendedor garante que em breve me atenderá. Continuo olhando para lugar nenhum. A loja é grande, especializada em materiais de construção. Fica próxima ao terreno que abrigava a fábrica de móveis. Hoje, apenas um descampado vazio às margens da rodovia. O parque segue ali, cada vez mais lotado de gente atrás de saúde, de uma ilusória eternidade. Aos poucos, os ruídos na loja aumentam. Os compradores buscam a solução para seus problemas. As casas precisam ser reformadas. Ele segue escolhendo as cores que mais lhe agradam. Será que ainda guarda alguma das nossas cartas?

Desisto de esperar. Caminho lentamente para o estacionamento. Não adianta ter pressa. É muito difícil para um daltônico escolher sozinho a tinta ideal para uma parede.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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