O texto não corresponde exata, integralmente, à impressão, ao sentimento, à interpretação mental que dele se faz. Tampouco consegue expressar a riqueza do processo criativo que o gerou, a ideia ou intenção que comoveu e moveu o autor. O texto não é o meio de expressão cabal: não logra absorver todo o elã que o escritor aplica à pena, todo o entusiasmo que o leva a encarar o abismo da página em branco. Tampouco é o meio de transmissão ideal, pois, como tecido sempre aberto a esgarçaduras de tipos diversos, conduz a compreensões (sempre mais ou menos parciais) que variam segundo o sujeito e seu humores flutuantes.
Na imperfeição do texto — sua provada incapacidade de absorver e transmitir sentidos cabalmente — reside a razão do que se chama de “impossibilidade de traduzir”. Por sua vez, a tradução — ela também mais que imperfeita — tem visível dificuldade de alcançar correspondência textual aceitável, a qual, a rigor, só poderia ser atingida na pura cópia, ao melhor estilo menardiano. Palavra a palavra, letra a letra. Entre dois textos exatamente iguais, como identificar qual o original, qual a tradução?
A característica aberta do texto — como matriz apta a receber e gerar combinações infinitas de sentidos — catalisa a qualidade do literário. Torna-se, com toda a sua imperfeição, o elemento ideal para jogar o jogo da literatura. Há ali todo espaço para o não dito, para as entrelinhas, para as lacunas; como também para o exagero das imagens carregadas de cores fortes, ofuscantes — transbordantes de sentidos, tantos que não podem ser absorvidos numa só leitura. E se não podem ser absorvidos numa só leitura, como traduzi-los num só texto? Em cada tradução exigem-se tamanhos milagres…
Sempre vale a busca da linguagem original na tradução. Mas também importa, em cada tradução, esforçar-se sempre por não quebrar o ímpeto da escritura, aquilo que capturou da energia literária do autor. Penetrar pouco abaixo do texto para captar-lhe a tela subcutânea e sua estrutura, mas jamais descartar todo o relevo, todo o colorido da superfície. Não basta captar a foto da tempestade de significados que assola o texto: há que preservar a força do vento e do movimento, que transforma a leitura em coautoria. Há que preservar a natureza viva do sentido, que, se às vezes parece saltar do texto, noutras vezes exige o mais fundo mergulho do leitor.
São muitas as maneiras de vislumbrar essa tensa fragilidade do texto, essa sensação de que tudo está sempre por um fio de boa ou má compreensão — esse quê a mais que o faz mais que tudo literário. Olhos bem abertos do tradutor para todos os detalhes; a pena afiada para riscá-los de volta na página em branco.
Também importa apreciar as diferentes paisagens a que estão sujeitas a escrita, em particular, e as línguas, em geral. Paisagens cambiantes que carregam, em si, o próprio germe do literário. Embrenhar-se no texto (língua + escritura) e suas densas ramificações de sentidos, perder-se em seus vales amplos e estreitos desfiladeiros, suas planuras e cordilheiras.
Simplificar pode fazer parte da política das editoras, e talvez seja arma de sobrevivência num mundo de leitura cada vez mais fragmentária; talvez seja o chamariz que possibilite ao livro literário competir — e ainda assim em clara situação de desvantagem — com as narrativas curtas e efêmeras (mas flamejantes) que sobejam nas diferentes redes eletrônicas. Simplificar também poderá prejudicar a sensibilidade dos leitores e reduzir o espaço literário.
No fim das contas, solitário, é o leitor ávido quem tem de conquistar cada centelha de sentido.