Anotações sobre romances (21)

Na segunda parte do livro de Gonçalo M. Tavares, em Matteo perdeu o emprego
Gonçalo M. Tavares, autor de “Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste”
29/05/2015

Na segunda parte do livro de Gonçalo M. Tavares, em Matteo perdeu o emprego (que, repita-se, fecha a seção narrativa do livro, e que é o “complemento” da primeira parte, desta se diferençando apenas por ser um relato mais longo e por ser composta por capítulos curtos enumerados), na segunda parte aparece a história do desempregado Matteo, casado, com filhos, que consegue um emprego para cuidar de uma mulher que não tem braços (mais uma vez, o absurdo se apresentando). Matteo tem um amigo, Guzi, que é sapateiro e que cria um macaco. Por falta de clientes, Guzi entra em decadência — e passa a ameaçar a comer o macaco, etc. Um relato impiedoso, sobre penúria financeira, sobre o processo de desumanização na sociedade de classes. Por fim, na terceira parte, nas Notas sobre Matteo perdeu o emprego, ou Posfácio, há, também em textos curtos, apontamentos filosóficos que comentam personagens/acontecimentos das duas primeiras partes. O procedimento aqui, como já indicado, é ensaístico, reflexivo — e também metalinguístico, pois há uma preocupação em discutir o arranjo, a disposição, a lógica da composição das duas partes anteriores. Há ainda intertextualidade (por exemplo, para ilustrar um dos apontamentos, é citado o romancista polaco Gombrowicz, autor de Cosmos). Embora, aqui e ali, correndo o risco de provocar certo enfado no leitor (que a essa altura já saboreou os deliciosos relatos das duas outras partes, em especial o relato sobre Matteo), essa terceira parte traz momentos de reflexão filosófica instigantes, muito cativantes. Por exemplo, a reflexão sobre o “lixo”: “…o que já não vai para lado nenhum, eis o lixo. Mas isso apenas para quem está de um lado, do lado de cá, dir-se-ia — porque para os outros, os que trabalham no lado do lixo, esses sim, percebem — só os que cheiram mal percebem que o lixo inicia outra narrativa, que o lado do lixo é o lado do início, é a primeira palavra. Ou seja: o que estava arrumado em definitivo, o lixo, eis que ressuscita como qualquer mágico no meio de um bom truque e diz: aqui estou eu, começamos!”.

Rinaldo de Fernandes

É escritor e professor de literatura da Universidade Federal da Paraíba. Autor de O perfume de Roberta, entre outros.

Rascunho