Na tradução, a cadência do original

Buscar e encontrar a cadência exata do original, plasmada agora em tradução. Ritmos certos, para aplicar o mesmo frescor da escritura primeira
29/01/2015

Buscar e encontrar a cadência exata do original, plasmada agora em tradução. Ritmos certos, para aplicar o mesmo frescor da escritura primeira. O original, de novo, como texto que apenas se alonga na tradução. Continuação, basicamente; eterna persistência das ideias. O original como o texto que não secou, mas ainda extravasa em outras línguas.

Ao tradutor, a tarefa de recupera algumas marcas do texto, aquelas que deveriam ser inextirpáveis — a essência do que lhe faz literário. Não apagar essas marcas, não falsear o original. Reescrever a criação que ainda impregna a página.

Mergulhar no abismo do passado, debelar toda a espessura da noite, clarear a sombra que naturalmente vai cobrindo todo o texto. A sombra do distanciamento, que vai lentamente roubando a vivacidade das palavras. Sombra que começa frágil e fugidia, mas que — havendo tempo suficiente — enterra os sentidos no breu mais indevassável. Tarefa normal de todo tradutor.

Evitar o estiolamento que provoca a falta de arejo. O texto também precisa de ar novo, de quando em quando. Não só o papel o exige, mas principalmente seu conteúdo.

Recuperar, se preciso, o viço de um texto agora quebradiço. Adicionar água e ar.

Adicionar, também, gotas de espírito ao texto. O dedo e a alma do tradutor. Aliar a tarefa de recuperação àquela da invenção. Sacudir os sinais de abandono, às vezes tão evidentes. Uma pitada de ousadia, sempre. O autor não a dispensou, nem a deve dispensar o tradutor.

Apurar o ouvido, sempre, para captar aquele tênue suspiro de indignação que expele o texto ao ser traduzido. Blasfêmias várias, pela dor da transposição. A perda do sentido, a desdita de esquecer a língua-mãe.

Dar sentido ao texto, direção ao movimento da leitura. De novo, a necessidade da cadência. Controlar a pulsação, posicioná-la na tensão precisa. Se preciso, amainá-la, até achar o tom correto do discurso. É por essas e outras que a tradução constitui tarefa tão intricadamente complexa. Fugidia, inapreensível e praticamente inensinável.

Apreender aquilo que pulsa na superfície do texto. Capturar o halo esquivo que circunda palavras e lhes dá algo mais que sentido. Não reescrever como quem engrola uma reza repetitiva, mas encontrar esse pulso e trabalhá-lo, traduzi-lo.

Manducar o texto, dele extrair o sumo e o sumo. Açoitar o silêncio de todo texto com o chicote da obstinação — pesquisa e pesquisa.

A tradução parece romper um equilíbrio tão duramente conquistado no original. Daí a necessidade de um esforço de restauração. Posicionar o texto em novo patamar de estabilidade, mesmo que transitória. Arrimá-lo para que, ao final, se ponha de pé sozinho. Sustentá-lo nessa dura transição de tradução a novo original.

Não definir nem parafrasear o sentido, mas senti-lo brotar do contexto e exprimi-lo como tal na tradução. Como ocorre na leitura, quando se apreende o significado da palavra desconhecida sem recorrer ao dicionário. Como num passe de mágica que se só se alcança depois de esforço intenso, extenuante.

Explorar mesmo aquilo que não se alcança do sentido do original. Experimentar. Sondar os fundos vãos do olvido, descamar, uma por uma, as densas camadas de sentido.

Ver o que está atrás das palavras. É o que eu — como leitor e tradutor — quero atingir.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho