Disfarço o tremor das mãos. O texto ocupa duas breves laudas. Leio o mais pausado possível. Não enrolo a língua. Evito que a saliva alague os significados. Desejo me livrar das palavras com suavidade. Capricho na frase de abertura: “Nunca odiei tanto o pai”. A crônica sobre a primeira bola de futebol se arrasta. Chego ao final encharcado de suor. Escancaro uma réstia da minha vida em Frankfurt. Alguns amigos gostam do texto. Outros apenas sorriem como se eu fosse um medíocre ladrão do meu passado. “Dói menos odiar o pai quando se está feliz.” A frase final se perde na multidão, mas reverbera há trinta anos na minha cabeça.
Vou pra Alemanha. A informação paira entre folhas de alface, tomates e lascas de carne. Não digo Frankfurt. Soaria ainda mais estranho, um alienígena a aterrissar em meio a um dos raros almoços em família. Ou o que restou dela. Sentir-me-ia nominando um doce alemão qualquer: Apfelstrudel, Zimtsterne, Bienenstich. O pai levanta os olhos do prato. Repete quase em silêncio: “Alemanha”. A palavra se estende no ruído seco dos talheres. Congela-se no início da tarde de pouco sol. Então, a surpresa: “Alemanha… Oriente Médio”. Na cadeira ao lado, ausente do mundo, meu sobrinho enfia o garfo num pedaço gorduroso de costela. “É, pai. Oriente Médio.”
Chove quando deixo o pavilhão da feira de Frankfurt. Uma chuva fina, incômoda apenas aos óculos. Nos corredores, encontro escritores brasileiros — todos de peito estufado pela honraria de estar em Frankfurt. Fantasmas de Machado no cemitério de Goethe. Desvio de alguns; cumprimento outros. Ignoro a maioria. Saio e entro no táxi rumo ao hotel. Amanhã, vou a Paris. Depois, retorno a Campo Largo.
Na churrascaria, somos três órfãos. A mãe do pai — a avó que amaldiçoamos a vida toda — morreu há muitos anos. Eu era uma criança apavorada diante daquela velha cadavérica e repugnante. Do avô, não lembro. Acabou bêbado. O pai é um órfão antigo. Meu sobrinho nunca conheceu o pai. A mãe — minha irmã mais nova — desapareceu numa madrugada inesquecível. Há poucos meses, chegou a minha vez. A mãe estirada na cama entregou-me a orfandade aos quarenta anos. Ser órfão aos quarenta anos não dói menos. Cada um a sua maneira, somos três órfãos a percorrer uma Alemanha em pleno Oriente Médio.
— Consertou o telhado, filho?
— Ainda não.
O cadeado está emperrado. Com dificuldade, afasto o portão. Estaciono o carro na garagem. A chuva é forte. Estou cansado da longa viagem de volta. Carrego as malas até o meio da sala. Olho em direção à cozinha. O fio de água escorre pelo piso branco. No canto ao fundo, a maldita goteira ao lado da máquina de lavar roupas. É persistente e enigmática. Nada a detém. Ninguém descobre de onde brota a água no telhado de vidro. Preciso chamar novamente o responsável pela obra. Vou contar-lhe sobre a Alemanha. No pavilhão, havia uma ampla cobertura de vidro. Acho que não vi nenhuma goteira. Quando chove em Campo Largo, talvez faça sol em Frankfurt.
NOTA
A crônica Chove em Frankfurt foi publicada originalmente no Vida Breve.