Mais restos de uma leitura de Machado

Pobre alma do tradutor, lançada nesse turbilhão, texto que se empesta de tradução
01/10/2014

Pobre alma do tradutor, lançada nesse turbilhão, texto que se empesta de tradução. Pobre texto seu, caro autor, abandonado a outras mãos, nem sempre tão hábeis. Em tensão, a têmpera precisa ser posta à prova. A correção, o apego à letra, percepção em rasante sobre a folha — olhos inquietos que tudo perscrutam — deslindando significados, elaborando os mais finos conceitos. Atento aos detalhes mais mínimos, sábio das nugas — que ninharias não são, mas traços textuais que constroem o sentido do literário.

Tradução não seria flor fanada, pintura de cor esmaecida, texto gasto e já lento na exalação do sentido, exaurido pelo tempo? Outra maldita metáfora, novo remoque denigridor? Ou a necessária reelaboração do texto, para fazê-lo viver mais? Para reter o brilho fátuo da centelha? Única chance de sobrevida diante do tempo que soterra letras e línguas. Chance de, sorrateiro o tradutor, derrotar o tempo, derrotar a morte. Salvação, enfim.

Diante do inevitável — a tradução — melhor seria, quiçá, aproveitar o ensejo para desbastar o texto. Não para retirar o desnecessário — pois em literatura, isso é bem difícil de definir —, mas para burilá-lo, poli-lo. Vesti-lo de um verde viçoso. Levantar esse véu de tristeza que, não raro, desce sobre o texto, para ensombrecê-lo de estranhezas, apagando-lhe devagar o rosto. Ásperas estranhezas, que arranham os olhos à mera leitura — matando a esperança de encontrar sentido.

Comparo o trabalho do tradutor ao daquele que esburga a grossa crosta de corrosão que se acumula sobre o trilho abandonado. Trilho onde tudo já é quase lenda. Nunca mais passou trem, a ferrugem cobrindo tudo. Não mais se sente o atrito purificador, apenas a tranquilidade que tudo amolece, definha e corrói. Lima e formão à mão, retira com paciência camada após camada após camada. Revela-se, ali debaixo, o trilho brilhante do novo texto, apontando novos caminhos para outros leitores. Não mais original enferrujado, mas rutilante tradução. Vida no texto novo.

Abre caminho a novos ventos, o tradutor. Austro ou tramontana, levante ou ponente, não importa. Cite todos os rumos da rosa dos ventos. Sopre vento fresco indicando o rumo. Aprofunde o refolho, em nome da literatura, pois aí, sim, vale o artifício. Surpreenda, surpreenda-se. Eis aí o tradutor.

Tradutor tumultuador, mofino — revirando textos, mergulhando nos refolhos de folhas e folhas e folhas. Leitor turbulento, levando desassossego ao autor — pobre texto meu, indefeso! Vítima de tantas violações, já não há porque chamá-lo original.

Tantas as páginas a percorrer, sem direito sequer à mais ínfima falha. Quisera fazer desse translato, transunto. O texto mais puro, à Pierre Menard, a mais perfeita cópia, digna de servir de modelo perene e edificante. Sonho de um tradutor, esse autor menor de empresa a mais delicada. Fixar novo texto através da leveza da translúcida malina, deixando que os finos detalhes transbordem e se imprimam como litogravura na página. Ganhos — não mais perdas — da tradução, pois o tradutor lê o que estava escrito, mas também o que não estava.

Há que viver e sofrer o indolente delíquio da letra, a palavra abandonada à mais pura materialidade. A obstinada negação do contextual. Nada mais que tinta a esmo, desenho sem sentido se desfazendo no papel. Mero contraste de luz e escuridão na tela.

Há que ser lépido para domar turbulências. Remoinhos textuais que afogam o leitor incauto — o fazem largar o livro ao meio. Eis aí o tradutor, acima de tudo um intranquilo. Sempre mergulhado na insatisfação, vítima dos mais constantes caiporismos — o fantasma da crítica ácida sempre a assombrá-lo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho