Verossimilhança é um conceito escorregadio. Ele só vale para a ficção, pois a realidade não precisa se assemelhar àquilo que já é por definição; ao contrário, parece às vezes que se compraz em desafiá-la, tão absurdos são os caminhos em que o real consegue se embrenhar. Hoje em dia já virou clichê dizer que determinada situação é “surreal”, querendo significar o mesmo velho e bom “parece mentira” que todos nós já expressamos alguma vez. Há também muita subjetividade envolvida, o que dificulta estabelecer parâmetros que possam auxiliar o ficcionista numa questão recorrente: como antever se uma situação inventada soará verossímil ou não. Por sorte, o leitor costuma acreditar naquilo que lê, desde que sinta firmeza da parte do autor.
Numa passagem de Quarenta dias, a protagonista, Alice, recém-chegada na capital gaúcha, toma um ônibus no terminal da empresa Carris no bairro Partenon rumo ao Hospital do Pronto-Socorro na Avenida Oswaldo Aranha, localizado no bairro Farroupilha, que fica junto ao parque de mesmo nome e que também é conhecido como Parque da Redenção. Durante o trajeto, puxa conversa com outra passageira, que precisa descer antes para chegar a seu destino, no bairro Bom Fim. Refletindo sobre o que acabam de assuntar, Alice se distrai e por pouco deixa de descer onde deve, na parada em frente ao HPS.
Para quem vive em Porto Alegre, o trecho acima soa bastante familiar ¾ e portanto real ¾, ao referir um percurso e vários endereços muito populares da cidade. Só peca por um detalhe: se o destino é o Bom Fim (grafado desta forma, e não Bonfim, como aparece no livro), a passageira deveria descer junto com Alice na parada do HPS ¾ é justamente ali um dos limites do folclórico bairro judaico, cuja localização é o lado oposto ao do parque ¾, ou numa das paradas seguintes, jamais antes, caso contrário ela desceria no vizinho Rio Branco e precisaria concluir a pé o mesmo percurso que o ônibus faz. Pode ser que o roteiro imaginado tenha tomado por base um mapa da cidade invertido ou talvez um trajeto inexistente no plano real.
Essa pequena incongruência, longe de ser um problema, é um bom exemplo de como a imprecisão geográfica pode não importar muito na ficção nem prejudicar a verossimilhança. Ao contrário, pode bem estar a seu serviço. Maria Valéria Rezende certamente não escreveu Quarenta Dias pensando como seu público-alvo apenas quem vive em Porto Alegre. Assim como a personagem, a autora só veio conhecer a capital gaúcha depois de ter concebido sua história. E veio então para “testá-la”, lançando-se pelas ruas da cidade sem conhecê-la, exatamente como acontece com Alice. Só começou de fato a escrever o romance ao retornar a João Pessoa, um passo a passo cuidadosamente planejado para dar à obra o tom de estranhamento que desejava. É claro que nesse caso o cenário tem uma especial relevância e algumas das imprecisões devem ser creditadas ao fato de Alice, ainda desacostumada aos hábitos porto-alegrenses, ter decidido narrar sua experiência sob a liberdade formal de uma espécie de diário. Faz sentido? Sem dúvida alguma. Ao leitor que estiver tão pouco familiarizado com Porto Alegre quanto a protagonista ou sua criadora, nomes e situações reais aqui encontrados e vistos sob uma ótica forasteira podem, sim, soar bastante inverossímeis. Todo o romance, aliás, é coerentemente construído para emular o clima de desconcerto que vive a protagonista, embora mantendo a estrutura lógica e a tensão características das histórias que envolvem o leitor do início ao fim.
Inesperado
Alice é uma professora aposentada que tem a vida virada de cabeça para baixo por conta de um acontecimento inesperado. Seu diário é um velho caderno escolar de folhas pautadas e já amarelecidas, com uma foto da boneca Barbie na capa, que ela descobriu entre seus pertences durante a mudança da Paraíba para o Rio Grande do Sul. Sem ter a menor ideia de como aquele caderno fora parar entre suas coisas e, portanto, sem ter nenhum vínculo sentimental com ele, Alice decidiu salvá-lo do descarte a que foi obrigada antes de se mudar. Ela cruzou o país por insistência da filha, Norinha, que mora aqui e quis que a mãe viesse assisti-la na gravidez que está planejando e, mais tarde, ajudá-la na criação do filho. Alice não queria, por nada nesse mundo, abandonar a vida pacata e bem resolvida que tinha em João Pessoa, odiava a ideia de ter de se desfazer de tudo o que levou uma vida inteira para construir e que não representava muito para ninguém, exceto para ela mesma, mas acabou cedendo à pressão que lhe foi feita impiedosamente, com direito a chantagem emocional da filha e outros ardis de convencimento por ela armados.
Uma reviravolta nos planos familiares, contudo, deixa Alice abandonada à própria sorte tão logo chega a Porto Alegre, uma cidade com a qual não sente a menor empatia. Sem ter como retornar a João Pessoa, vê-se desamparada e confusa. Ao receber um pedido cheio de aflição para encontrar Cícero Araújo, filho de uma conhecida sua da Paraíba que há muito não dá notícias à mãe, Alice encontra um motivo para ficar quando decide ir procurá-lo. Nossa heroína nem desconfia o quão difícil será catar o conterrâneo sumido numa metrópole de um milhão e meio de habitantes, mas aceita o desafio. Alice vê à sua frente a chance de purgar a culpa e a frustração de uma decisão equivocada, digerir a leviandade com que foi tratada pela própria filha e ao mesmo tempo se reestruturar emocionalmente para encarar uma nova e inescapável realidade. Num rompante, bate a porta de casa sem levar o endereço e sem saber como retornar e sai para seus quarenta dias de peregrinação pelas ruas de Porto Alegre. Quando volta, encontra finalmente uma utilidade para o velho caderno do qual insistiu em não se desfazer e nele passa a registrar sua aventura.
Quarenta dias tem uma estrutura típica: a protagonista desfruta de uma vida equilibrada até um conflito surgir para romper esse equilíbrio e forçá-la a uma reação; o processo é necessariamente transformador. A estratégia de Rezende para imprimir novidade à fórmula consagrada foi reforçar com cores fortes todos seus ingredientes. Alice é uma personagem altiva e determinada, mesmo na fase em que vive a placidez da aposentadoria. Consente em se mudar para o Sul, mas a caro custo engole a contrariedade, e esse fato por si só já se anuncia como agente deflagrador de um processo de transformação. Rezende retrata então a personagem fragilizada e inconformada diante da nova situação. Aí é dado o tiro de misericórdia no seu já combalido equilíbrio quando ela sofre o abandono tão logo chega ao novo endereço. A relação com a filha, que já vinha dando sinais de não ser das mais saudáveis — aliás, raramente é —, acaba por revelar sua deterioração. Por fim, a reação de Alice é de uma extravagância que ensejaria um daqueles “parece mentira” de que se falou há pouco. Esse é o momento da ruptura, e quando inicia o grande voo da personagem.
Dois movimentos
O diário só começa a ser escrito quando Alice retorna de seus quarenta dias de extravio pelas ruas de uma Porto Alegre empobrecida aonde os roteiros turísticos não chegam e mesmo seus habitantes mais favorecidos só conhecem de ouvir falar. Não cabe aqui adiantar se ela foi bem-sucedida ou não em sua missão de encontrar Cícero Araújo, nem se conseguiu fazer as pazes consigo mesma ou se estabeleceu finalmente algum vínculo afetivo com uma cidade que se mostrou de cara tão estranha e artificial. Embora esses aspectos conduzam a ação e criem o suspense necessário para que o interesse do leitor se mantenha bem aceso até o final, eles vêm a reboque de outros dois movimentos. Alice desvenda ao leitor as peculiaridades e os mistérios que Porto Alegre esconde por baixo de sua condição de metrópole igual a outras tantas que existem pelo Brasil afora, e a descoberta é feita a conta-gotas, em pequenos detalhes que a argúcia da autora vai buscar onde, a olhos já viciados, parece não haver nada assim de tão especial. Como um espelho dessa aventura, há a peregrinação interior da personagem, e esse é o verdadeiro conflito da história. A Alice retratada antes da mudança é como a metrópole igual a outras tantas; a cada percalço, a cada reação destrambelhada, vai sendo moldada uma outra Alice, muito mais humana e próxima do leitor do que aquela que ele conheceu lá no início.
A linguagem, como já se falou, é construída à imitação de um diário. Muitas frases não chegam a ser finalizadas, permanecendo soltas no ar sem ponto final. Cada capítulo abre com a citação de um autor, numa seleção bem eclética cujo único critério é o gosto literário de Alice, uma leitora voraz. Há várias ilustrações com material publicitário, comandas de lanchonetes, pedidos de padarias. O estilo é direto, despojado e bem humorado. Alice, mesmo nos momentos de maior perturbação, não deixa de exercer sua ironia ferina.
Um detalhe indesejado: Rezende preferiu usar “seo”, como equivalente a “senhor”, em vez de “seu” (seo Fulano, seo Beltrano). O problema é que essa forma deixou de existir há mais de setenta anos, com a reforma ortográfica de 1943, tanto que os dicionários atuais sequer a registram. Ressuscitá-la talvez pudesse fazer algum sentido num outro tipo de discurso, um que pretendesse reinventar a língua ou reviver as experimentações linguísticas de um Guimarães Rosa, o que não é absolutamente o caso.
Aliás, a boa literatura não se faz com acrobacias formais e outras estratégicas cujo único fim volta-se para dentro dela mesma. Uma boa ideia, um discurso seguro e bem construído, um tanto de fantasia, outro tanto de verossimilhança e, pronto: logo aparecerá uma legião de leitores ávidos para desfrutá-la. Esse é o tipo que literatura que Quarenta dias promete. E entrega.