Comentários sobre a tradução de A a Z

Interessante livro sobre tradução, intitulado La traducción de la A a la Z, do espanhol Vicente Fernández González, professor da Universidade de Málaga e especialista em tradução
Vicente Fernández González
01/07/2014

Interessante livro sobre tradução, intitulado La traducción de la A a la Z, do espanhol Vicente Fernández González, professor da Universidade de Málaga e especialista em tradução. O nome na capa parece sugerir espécie de glossário, algo que não se verifica no miolo.

O autor montou, em capítulos conceituais — organizados em ordem alfabética dos títulos —, colagem de textos próprios e alheios. Nem todos sobre tradução. Navega também por outros terrenos — ética, política, educação, tecnologia —, os quais, às vezes, exibem vínculo relativamente frouxo com a tradução.

Por sua heterogeneidade — tanto de temas quanto de autores —, não é exatamente livro fácil de resenhar. Melhor, talvez, destacar ideias e conceitos interessantes, pinçados de textos diversos.

Em B de Borges, lemos sobre os tempos dos textos. O tempo da criação, da fixação do texto, e o tempo da leitura. No intervalo entre esses tempos, o repouso — a era do texto igual a si mesmo, incontestavelmente. A era em que se dispensa a tradução, pois fazer sentido é prescindível. Nas duas pontas, a miraculosa transfiguração de algo pacífico — o texto quieto no papel — em explosão de diferentes interpretações.

Em E de Exterioridade, lemos sobre a questão das significações imaginárias, tema intrinsecamente vinculado à culturalidade dos textos. Há que entender o texto não apenas em seu contexto imediato, mas em seu âmbito cultural mais amplo. Cabe ao tradutor fazer essa viagem, do texto estreito no papel ao ambiente mais amplo em que se insere. Cabe ao tradutor aprofundar-se no texto, buscando aproximar-se, o mais possível, das significações imaginárias, das experiências mentais e sensoriais que precisam ser interpretadas. Deve, contudo, cuidar para não cair, literalmente, dentro dessas significações — fato que anularia todo o esforço de contextualização, tornando opaco o texto traduzido. Evitar, a todo custo, a viagem sem retorno para dentro do texto.

Em H de História, lemos sobre obras que, por assim dizer, provocam profusão de traduções. O exemplo é o poema Le Cimetière Marin, de Paul Valéry, publicado em 1929. Trinta e tantas traduções para o espanhol. Por que tantas traduções diferentes? Há aqui algo mais que simplesmente a necessidade de traduzir — uma necessidade editorial, por exemplo. Não serão, certamente, todas traduções sob encomenda. Nem se pode explicar tal profusão pelo desfalecimento do texto — espécie de cansaço textual que requer nova infusão de vida via tradução. Há aqui o gosto de traduzir, espécie de pulsão por mostrar aos leitores de sua língua as virtudes de um texto alheio — aliadas às virtudes próprias do tradutor-poeta. Fenômeno que teria acontecido, também, com o poema The raven, de Edgar Allan Poe, entre outros.

Em I de Interpretação, lemos sobre a natureza da escrita, como fenômeno que, no dizer de Roland Barthes, instaura sentido sem cessar, mas sempre acaba por evaporá-lo. E é na evaporação do sentido — no curto espaço que o leva do texto à mente do leitor — que o tradutor tem de operar sua arte decifradora.

Em R de República? (das Letras), lemos sobre a importância da tradução para o original. Não se trata de importância, digamos, qualitativa. Nem se trata de questão de sobrevivência do texto via tradução. Trata-se, simplesmente, de hierarquia das línguas. Já se disse, em algum lugar, que a tradução não poderia significar nada para o original. Na prática, não é assim. Basta pensar na importância da tradução para o inglês no caso de um original em português. Pensar nas implicações, para o original, de sua projeção em ambiente mais amplo e economicamente mais promissor. De sua nova projeção em seu próprio meio original, mediante legitimação que vem de fora. Tradução como índice de prestígio.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho