O leitor exerce pressão sobre o texto, não há dúvida. Verga o texto sob o peso do leitor/tradutor? Amolda-se? Inflete até escorrer sentidos numa nova fôrma? Será que o tradutor tensiona a fibra do texto, esticando-o até seus limites — até o ponto em que escapa à órbita do autor para aliar-se aos novos senhores/leitores?
Há diversos tipos de leitura e de leitores. A tradução é um tipo de leitura, mais cuidadosa, mais detida e atenta. Mais trabalhosa, por implicar a tarefa ativa da reescritura. O tradutor é um tipo de leitor, aquele que tem não apenas que ler, mas reler e deter-se — refletir — sobre teor do texto.
Há autores que refletem sobre o tipo de leitores que terão. Não sei se terão refletido — ou haverão de refletir — sobre o tipo de tradutores que se vão debruçar sobre suas crias.
Cortázar — por meio de seu suposto alter ego Morelli, em Rayuela — desenha alguns tipos de leitor. O leitor-cúmplice, por exemplo, aquele que ajuda o autor em seu processo de produção do texto e de seus sentidos. Mera possibilidade, talvez. A de dar ao leitor a argila com que vai trabalhar, moldar a história, produzindo significados e indicando rumos novos. É a “argila significativa” que funciona como um começo — não o bloco de argila totalmente informe, mas algo que já indique pelo menos uma intenção.
O autor lhe dá, então, material para inventar. O princípio, talvez, de O jogo da amarelinha, em que o leitor é convidado não apenas a ditar a ordem da história, mas talvez, passo adiante, criar seu próprio enredo.
A “matéria em gestação” que se vai transformar na história do leitor, segundo o rumo que tomar. Nesse processo, claro, vale saltar capítulos e trançar a ordem — e a ordem dos capítulos tenderá a gerar novos sentidos, associações e conclusões imprevistas pelo próprio autor.
O leitor/tradutor se torna coparticipante da experiência do autor — partilhando, inclusive, das dores da criação (compadecedor).
Outra metáfora, além da argila e seus múltiplos moldes: a fachada atrás da qual se desenrola aquilo que o leitor construa. O autor ergue a fachada no texto; seu cúmplice, o leitor, inventa o miolo e sua miríade de detalhes. Repete, de certa forma, a experiência do autor — que, antes, além de erguê-la, certamente não deixou de tatear seus espaços interiores.
Argila, fachada, indicação de metáforas. Meras metáforas — e há tantas outras — de um processo que tanto nos custa explicar.
Cortázar arriscou conceitos controversos. O leitor-cúmplice seria o ideal, talvez, mas haveria outros tipos. Um deles, mais passivo — o leitor-fêmea — não se atreveria a moldar a argila e não se arriscaria a cruzar a fachada. Contentar-se-ia com a forma básica, o molde exterior, a superfície do texto — e daí já colheria o que lhe interessa.
Depois Cortázar parece ter-se arrependido da imagem — leitor-fêmea. Seria politicamente correto? Não deixou ele mesmo de contestar-se. Fica o conceito, de qualquer modo, do leitor superficial, que procura haurir do texto a satisfação rápida e fácil — chegar ao fim do livro com a sensação do prazer cumprido. Não é o tipo de leitor que opera sobre o texto — que o faz vergar e trair novos sentidos. Não esgarça a fibra do texto para ler mais nas entrelinhas. Se contenta com a leitura rasante, aquela que já vem digerida e pronta para o entendimento.
Ao tradutor não resta escolha. Não pode fazer o papel de leitor passivo. Faz parte da definição de seu ofício a cumplicidade — seja com ou contra o autor. Leitor-cúmplice dá molde à argila e recheia a fachada. Cria novo texto, novo enredo, novo mundo, para novos leitores. Tradutor penetrando no texto como personagem.