A senhora Z. nasceu na roça. Num lugar incerto, sem água encanada e luz elétrica. A parteira a arrancou à vida numa manhã de novembro. Teve sorte ao nascer e suportou a luz da terra árida que a esperava. Cresceu por ali, entre o terreiro de galinhas magras e o milharal na encosta da serra. Foi à escola — uma casinha de madeira no meio do nada — apenas o tempo suficiente para aprender a escrever o nome e compreender o significado de algumas palavras. Mais não era necessário. A primogênita veio ao mundo para cuidar da tropa de irmãos que a seguiria. Talvez treze ou quatorze, sem contar os mortos de maneira prematura. Ao que parece onze sobreviveram.
A senhora Z. cresceu na roça. Virou uma moça de canelas grossas e nenhum sorriso. Aos domingos — depois da missa e do almoço na mesa farta de polenta, frango, queijo e salame —, ela e as irmãs se divertiam na matinê no salão da igreja. Uma gaita velha e um violão desafinado animavam os dançarinos de pés rachados e mãos calosas. Ali, conheceu um homem — cara de índio, pele cor de cuia de chimarrão, olhar oblíquo e dissimulado. Encantou-se pelo moço de fala macia e passos suaves pelo salão improvisado.
A senhora Z. casou na roça. Uma cerimônia bem simples. Sem bolo com os bonequinhos dos noivos em cima. Mataram galinhas, carnearam dois porcos. Cerveja e cachaça completaram o arremedo de festa. Dançaram poucas músicas no casebre de tábuas. Mudou-se da casa dos pais para a da sogra. Levou quase nada. Apenas a roupa do corpo. Não havia batom, creme hidrante, esmalte ou perfume. A vaidade feminina não passava de um fantasma a arrastar um lençol branco na outra margem do rio.
A senhora Z. logo engravidou. Um menino cor de cuia de chimarrão berrou na madrugada de sangue por entre as pernas. O menino cresceu na casa de chão batido, fogão a lenha e terreiro de uma galinha solitária. Em breve, um porco chegaria ao chiqueiro. Pouco mais de um ano depois, outro menino rasgou-lhe o quadril e sujou suas coxas brancas e ainda rígidas. Era branquinho feito leite. Cabelos de algodão. Parecido com a mãe. A batalha com o marido estava empatada. Meses depois, seria a vez de uma menina. Pronto: a senhora Z. tinha uma família.
A senhora Z. mudou-se para a cidade grande. Os filhos tinham de crescer longe da penúria que os rodeava. Foram morar e trabalhar numa chácara de flores. Sentia-se em casa: cuidava de plantas e flores o dia todo. Os filhos sempre no seu encalço, implorando um carinho que nunca vinha. Um dia, mandou-os à escola. Tinham idades diferentes, mas rumaram ao mesmo tempo para a sala de aula. A escola ficava perto de casa. Iam e vinham aos bandos. Ruidosos e felizes. A mãe os esperava com um prato de arroz e feijão.
A senhora Z. perdeu todos os dentes. Ganhou uma incômoda dentadura. Os filhos cresciam. Os dentes caíam. Nunca mais sorriu. Os lábios jamais desenharam aquele risco côncavo entre uma extremidade e outra da boca. Continuou por ali, regando samambaias, plantando azaléias, podando cedro, montando pinheirinhos de Natal. Depois, mudou-se para outra casa. Foi trabalhar de arrumadeira num hotel. Deixava para trás as unhas sujas de terra. Os filhos seguiram na escola. Um desistiu no meio do caminho. Mais tarde, ela perambulou limpando a casa dos outros. Tinha uma profissão: empregada doméstica.
A senhora Z. ficou sem marido. Simplesmente, numa manhã de sábado, ele foi embora. Restaram-lhe os filhos, já crescidos. Depois a filha morreu numa madrugada silenciosa. O pai já havia se suicidado. Agora, a filha morria de repente, sem tempo para despedidas. Na morte do pai, chorou miúdo, baixinho, amontoada no sofá de napa. Na da filha, ganiu pelos corredores do hospital feito um cachorro apedrejado. Continuou limpando a casa alheia e cuidando para que a dentadura não despencasse da boca murcha. Tudo sob a proteção de um Deus que a acolhia nas missas aos domingos, nos terços durante a semana.
A senhora Z. acreditava em Deus. Acreditava muito. Corria de casa em casa pela vizinhança com a capelinha debaixo do braço. Cuidava para que Deus não a abandonasse. Levara os filhos à catequese, ensinara-os a rezar todas as orações possíveis, guiara-os pelo caminho que leva direto para o Céu. Para sua tristeza, todos os filhos tomaram o caminho do inferno. Ou, no mínimo, do purgatório.
A senhora Z. ficou velha e doente. A comida custava-lhe passar pela garganta. Era magra e triste. Envergonhada, nunca ia a restaurantes. Poderia se afogar com um mísero grão de arroz. A vergonha pública, escancarada. Sentava-se a um canto da mesa da cozinha e mastigava lentamente a menor porção no prato. Levava uma eternidade para terminar. Nunca se acostumou com garfo e faca. A colher recolhia sopa, arroz, feijão, macarrão. Falava muito pouco. Irritava-se por nada. Um dia, um câncer resolveu trucidar-lhe o corpo. Conseguiu com facilidade.
A senhora Z. nunca viajou de avião. Nunca foi ao cinema. Não sabia onde ficava os Estados Unidos. Falava algumas palavras num italiano tosco aprendido na infância — única herança familiar. Acreditava que Deus resolveria seus problemas. Torcia para que a quimioterapia e a radioterapia lhe dessem mais alguns anos de vida. Sua torcida foi em vão.
A senhora Z. passou seus últimos dias num sofá. Um buraco no pescoço para respirar. Outro na barriga para engolir a gosma de água, leite e outros nutrientes. Um espectro de gente a vagar pela casa. Numa segunda-feira, o filho — aquele que se parecia com ela — encontrou-a morta sobre as cobertas na cama de solteiro. Morreu numa manhã ensolarada. Dias depois, vieram a neve e o frio intenso. Enterraram-na ao lado da filha.
A senhora Z. está morta. No caixão, a dentadura descolada do restante do corpo.