Roland Barthes dizia que o texto pratica o recuo infinito do significado. Não entrega fácil. Não há entrega, só luta, disputa. Mais esconde que facilita. Comissuras que sugam sentidos, deixam ranhuras vazias mas sugestivas. Textos são cheios de sugestões, só.
O texto é também dilatório, segundo o mesmo Barthes. Recuo e dilação. Um sempre para trás, para depois. O sentido se encontra logo ali, ali após. Após certo esforço, certa dose de sangue, certo trecho cruzando duramente o visco. Esse texto fluido espesso que se nega sempre, pegajoso, sempre quase como prestes a se solidificar para matar-te e a teus sentidos.
O texto tem que entrar pelos olhos, pelos poros, até fazer parte do tradutor. Para que o tradutor possa fazer sua parte do texto. Possa, digamos, dar sua contribuição.
Texto é estampa desmaiada. Há que dar-lhe cor, dar-lhe prazer e dor, dar-lhe significado. Eis a missão do tradutor. Açular asperezas do significante, vergastar para fazer correr a seiva.
Desprezar o contentamento e apostar na virtude e na energia do desassossego. Pesquisar e recolher as centelhas desprendidas no momento mesmo da criação do texto.
É fácil ceder à visão que nasce do langor, da falência da vontade e da reticência em arriscar. Visto de cima, o texto semelha tela inconsútil. Sem as fissuras — cavidades a atiçar criatividade — que aparecem num ângulo de visão oblíquo e ardente. A visão informada, interessada, que escapa ao comum. Ângulo de leitura que permite a descoberta e a infusão do sentido.
O texto é o campo por excelência do significante, ainda segundo Barthes. Não do significado. Significado é dádiva do cérebro, mas o papel ou a tela só te podem dar a casca. Há que preenchê-la com a massa de conhecimentos, a massa de informações esparsas, a massa de preconceitos.
E o significante, conforme o filósofo francês, não seria sequer a primeira parte do sentido. Não vestíbulo nem acesso, entrada. Não seria outra coisa que sua conseqüência. É seu depois. Nasce do sentido, mas não é parte dele. Sugere, mas é vazio de significado.
É o sentido que procura o significante, aquele ao qual melhor se encaixa, ao qual se adapta, mesmo que imperfeitamente. Descenso, redução da riqueza quase infinita do quase inefável.
O terreno do significante é o plano. Não escapa às duas dimensões. Não alça vôo. Não demanda o sublime, as alturas do pensamento. Incapaz de esgarçar os limites mesmos da mente para roçar o indizível.
Significantes são mais como peças que se encaixam num tabuleiro de jogo, peças que deslizam presas à superfície.
Voltando a Barthes, sem dele me haver afastado, diria que o infinito do significante tem horizonte próximo. Não vai além. Não almeja o inominável. Rasteiro, busca o alívio e o roçar do jogo.
É nesse campo que trabalha o tradutor. Seu jogo é, primeiro, o jogo do significante. O jogo do texto, as peças presas à tela. Preenchendo os espaços com a massa que lhe vem à mão.
Processo inverso, talvez, ao da escritura original, que parte do significado ao significante. O tradutor tem que remontar ao tempo da criação original. Jogando o jogo do significante, adivinhar o significado.
Esmeril à mão, o tradutor vai burilando significantes, apurando sentidos. Joga o jogo dos significantes, ágil, correndo as peças pelo tabuleiro. Armando. Combinações, ensaios e erros.