Sobre escrever-se

A tentativa de uma incursão por mundos literários sombrios e o necessário retorno às narrativas em que a esperança e o amor sobressaem
Ilustração: Oliver Quinto
03/11/2024

Estou às voltas com a produção de um livro de contos. O primeiro. Já participei de várias antologias, mas é a primeira vez que eu faço um livro inteiramente de contos só meus. Na semana passada, fiz um experimento para testar a minha capacidade de sair de mim e criar algo diferente para completar a seleção dos últimos contos e entregar à editora. Quis criar algo tão diferente de mim que os leitores que já me conhecem seriam incapazes de me reconhecer, como se eu vestisse uma máscara para me esconder. Pensei que estivesse fazendo uma brincadeira de esconderijo, mas na verdade eu estava mesmo era fugindo de mim.

O resultado foi devastador no pior sentido da palavra. Ao reler os textos percebi que me afastar de mim foi um erro técnico. Eram textos cruéis e pesados, sem nenhuma esperança nem amor; algo que despedaçava qualquer sopro de aleluia ou redenção; seres destruídos em um mundo sem cura. Achei que deveria reproduzir de alguma forma o mal-estar que assombra a humanidade já que a literatura pode muito pouco, quase nada, diante do horror. Quando fui reler, me senti péssima como se tivesse cometido um crime; um atentado à escritora que me tornei ao longo de 20 anos de carreira.

Há autores que são excelentes e mestres em criar mundos sombrios. Gosto de histórias sombrias e muitas chegam às telas com enorme sucesso. Também precisamos de histórias assim. Só que eu não consigo escrever o sombrio com talento. Fracasso quando deixo meu texto sem nenhuma esperança. Claro que meus leitores sabem que eu não escapo dos abismos e meus textos não são mundos de fantasia, mas sempre escrevo alguma possibilidade de alívio ou de percepção de que somos agentes da transformação sem nunca apelar para o pedagógico, claro.

O que eu fiz? Apaguei tudo. Não tenho medo de apagar o que não gosto. Se é preciso coragem para escrever, precisamos de coragem igualmente para apagar tudo quando percebemos que o texto não está bom, sem medo.

Ainda não retomei o livro. Escrevo primeiro na mente e só depois de organizado todo o texto eu devolvo meu pensamento literário para a tela e aí elaboro as palavras e faço os acertos. Já sei como finalizar os contos. Estou de volta a mim e isso é um grande alívio.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

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