Na segunda-feira passada, completei quarenta anos. Para comemorar, levei a mãe ao oncologista. Sempre que o rosto ganha uma cor indefinida, entorta para os lados, e o chiado do pescoço se transforma num ruído monstruoso, é preciso fazer alguma coisa — mesmo sem saber muito bem o quê. Com pouca esperança, estaciono o carro a uma quadra do consultório. Não imaginava que poucos metros representariam uma maratona a uma mulher com câncer. Arrastamo-nos pela calçada irregular sob o sol forte do início da manhã — uma tartaruga e uma lesma apostando uma corrida cujo vencedor também sairá derrotado. Na entrada do edifício, recebo uma otimista mensagem pelo celular: parabéns, a vida começa aos quarenta. Ao meu lado, a mãe respira com dificuldade, o ar passa estrangulado pela traqueostomia, o corpo sofre para se mover. Está grudada no meu braço direito. Depois de velha, a mãe se transformou num inseguro sagüi. Nem desconfia de que meus braços são galhos de uma árvore condenada pelo pavor. Tenho medo de começar órfão a vida aos quarenta.
A secretária é simpática. Pede-me a identidade para preencher o recibo de duzentos reais da consulta. Espero que o governo me restitua parte do dinheiro que gasto por ele. Cansado das filas do Erasto Gaertner, resolvi levar a mãe a um médico particular. A luta contra o câncer é igual a qualquer batalha: não se pode desistir antes da derrota. Ao escrever a data do recibo, a secretária ignora os meus quarenta anos: 21 de janeiro de 1973 são as informações impressas na identidade. Nasci neste dia, por volta das onze da noite. Talvez tenha evitado me felicitar pelo aniversário. As pessoas não sabem muito bem como reagir diante do aspecto monstruoso da mãe. O olhar de pena é um lugar-comum. Comemorar quarenta anos me parece irrelevante.
Dr. Arno é japonês. Ótimo sinal. Japoneses normalmente são atenciosos, calmos e pacientes. Mulheres com câncer precisam de muita paciência. Arrasto a mãe até a cadeira diante do médico. Sou a tartaruga e estou em melhor forma física. Explico o que sei sobre o câncer da mãe. Há vários buracos no meu relato. Entrego ao Dr. Arno todos os exames realizados. Exames sabem mais sobre câncer que filhos desesperados. Ele analisa tudo com muita atenção. Duzentos reais em dinheiro sempre melhoram o convívio entre médico e paciente. Enquanto Dr. Arno vasculha os resultados, digo-lhe que gostaria que a mãe tivesse uma qualidade de vida um pouco melhor. Uma frase óbvia e quase ridícula. Deveria ter gritado: “Socorro. Devolva a minha mãe. Pode levar esta embora e me devolver a outra”.
Ao fim de uma breve eternidade, o oncologista nos encara: “Os exames estão ótimos. Coração, pulmão, fígado e rim estão muito bem”. Em termos técnicos nos diz que o câncer foi destruído pela quimioterapia e radioterapia. Desconfio de que esteja apenas escondido sob a unha do dedão do pé direito. A qualquer momento, sairá de mansinho e começará novamente a mastigar as pelancas da mãe. “A dona Zulma poderá viver até os noventa anos.” A afirmação tira a mãe do mundo dos cancerosos. Olha-me espantada. Não esperávamos por esta maldição.
— E este aspecto do rosto, o inchaço, a deformação, esta cor, este cheiro? — pergunto sem escancarar minha agonia.
Dr. Arno explica que tudo é resultado do tratamento. Destruiu o câncer e o pescoço da mãe. Resumindo, o sangue não circula direito pela região bombardeada — o que transforma a mãe em algo irreconhecível e, às vezes, pavoroso. Não há o que fazer. Às vezes, está melhor; outras, muito pior. Não basta ter câncer, é preciso contar com a sorte. Para chegar aos noventa anos ainda faltam vinte e dois. Se a maldição do Dr. Arno estiver correta, terei sessenta e dois anos no velório da mãe. Não vou esperar tanto tempo.
Em seguida, Dr. Arno começa a escrever sem pressa numa folha com o logotipo da clínica. Linfodema, disfagia, dilatação esofágica, edema, fibrose, retração cicatricial — palavras que tentam explicar nosso desespero. Não há idioma capaz de explicá-lo. O médico abandona a escrita e apela para desenhos de traço infantil. Desenha uma garganta, simula a traqueostomia, explica o funcionamento daquilo que não enxergamos. Mostra a mãe por dentro. Hoje ela é mais bonita por dentro que por fora. Se abrisse o corpo da mãe, o que encontraria? Ao esboçar o aparelho da traqueostomia, sinto vontade de gargalhar. Os tubos tortos lembram um diminuto vibrador. Será que a mãe já viu um vibrador? Será que tem um escondido no guarda-roupa? Como foi sua vida sexual? Perguntas estúpidas de um filho de quarenta anos.
Após a rápida aula sobre parte do corpo humano, Dr. Arno prescreve dois medicamentos para amenizar o sofrimento de sua nova paciente. Marca o retorno para os próximos dez dias. Estendo-lhe o recibo de duzentos reais para que o assine. A assinatura pequena apenas raspa a data: 21 de janeiro de 2013. Completo quarenta anos. Não farei festa. Seria um tanto inconveniente. Melhor economizar para a comemoração de noventa anos da mãe. Desisto de perguntar se foi ele quem escolheu o ventilador da sala de espera. É da marca Arno. Seria só mais uma tolice. Dr. Arno abre a porta e se despede. A mãe se agarra no meu braço esquerdo. Precisamos retomar a nossa maratona.
Ainda estamos em último lugar.
NOTA
Crônica publicada originalmente no site Vida Breve.