A metáfora feminina da tradução

Em textos e livros sobre tradução, a metáfora da mulher é lugar-comum
01/06/2000

Em textos e livros sobre tradução, a metáfora da mulher é lugar-comum. Qualquer um que trabalhe com tradução não deixa de ouvir falar das belles infidèles ou da natureza “feminina” do texto traduzido. Não sei se é possível identificar a origem dessa identificação entre tradução e mulher. Mas ao menos podemos discorrer um pouco sobre essa relação curiosa . . . e às vezes embaraçosa.

Digo curiosa porque é natural que alguém se admire da metáfora. Por que a tradução é comparável à mulher, afinal? Antes de mais nada, é bom deixar claro que a metáfora tem raízes atoladas no preconceito e na discriminação — daí o embaraço. Lá pelo século XVI, por exemplo, dizia-se que as traduções eram tidas como femininas, pois eram textos “de segunda mão”, ou “defeituosos”. Coisa grave seria dizer isso hoje. É claro que a implicação é que as mulheres são inferiores aos homens, como as traduções são inferiores aos originais.

Outro bom exemplo nos vem do século XVIII. Lá certo tradutor, prefaciando um trabalho seu, dizia que fizera ao texto o que o povo de Deus tinha ordens de fazer às belas mulheres capturadas: rapar o cabelo e aparar as unhas. Enfim, privá-las das armas de sedução. O texto traduzido era como uma mulher prisioneira: careca, unhas cortadas rente à carne, certamente trajando roupas folgadas e molambentas.

Mas o lance mais imaginoso nesse jogo da metáfora feminina da tradução é a tensão entre os conceitos de beleza e fidelidade. Seria possível que uma tradução (ou uma mulher) fosse ao mesmo tempo bela e fiel? Ou será que só nos restavam as combinações menos ideais: as belas infiéis, de um lado, e as feias fiéis, de outro? Para salvar o traço espirituoso desse jogo de conceitos, só havia uma combinação possível: as belas infiéis.

Mais que uma metáfora, as belas infiéis configuram quase um gênero, uma escola tradutória, que prosperou e se tornou dominante nos séculos XVII e XVIII. O nome diz tudo. Eram traduções belas, muitas vezes resvalando em rebuscamentos adocicados demais. E também infiéis, cheias de adições, omissões e interpretações que o tradutólogo conservador consideraria como erros. Eram, no fim das contas, como as mulheres: se belas não são fiéis, se fiéis não são belas. Uma metáfora politicamente incorreta.

Mais correto, politicamente, é o escritor tcheco Milan Kundera. Cioso revisor das traduções dos seus livros, ele não vê incompatibilidade entre beleza e fidelidade. Pelo contrário, acredita que só é bela a tradução fiel, que é a “paixão da fidelidade que faz o autêntico tradutor”.

No fundo, essa questão da fidelidade vem sendo encarada hoje com muita desconfiança nos círculos pós-modernos e, mesmo nos meios mais conservadores, tem sido relativizada. Questiona-se, por exemplo, como faz a teórica pós-estruturalista Rosemary Arrojo, a que seriam fiéis os tradutores. Qual seria o objeto da fidelidade afinal? A palavra gravada no papel? As idéias suscitadas pelas palavras? E como controlar a proliferação das idéias, das interpretações, da criatividade desencadeada por um texto? Difícil responder.

Mas a polêmica a respeito da fidelidade não tem fim. Não se esgota na brejeirice do conceito das “belas infiéis” nem nos sofisticados meandros da desconstrução do par original-tradução. Tampouco perde o viço a metáfora da tradução-mulher. A cada tradutor, a cada leitor, o aceno para mais uma traição.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho