Volto ao tema das lembranças, reminiscências. Recordar nunca é demais, especialmente quando se fala de tradução. Traduzir é às vezes como lembrar: reunir, na memória, ou no que sobra dela, os cacos de um fato/texto passado. A remontagem dificilmente sairá como o original. Somos sempre traídos pela memória, assim como a dupla autor/original é traída pelo tradutor. Disso não há consolo.
A reconstituição/restauração nunca recompõe o que foi realmente um dia. De fato, não há mesmo sequer como saber, com certeza, exatamente o que foi o texto um dia. São tantas as nuanças, tantos os desvios… Mas que não sirvam, por favor, como desculpa para a má tradução. É nesse meio movediço que se deve mover o tradutor. Augurando que ao menos se mantenha à tona. Onde se identifica a dificuldade, aí mesmo está o mérito de levar a tarefa a bom termo — contra todos os prognósticos.
A escritura, inclusive a tradução, é sempre processo singular. Não há imitação possível, por mais que se tente. Sempre é preciso criar, mesmo traduzindo. A questão é mesmo esta: criar não é uma decisão do escritor/tradutor, mas uma necessidade. Algo inescapável. Traduzindo, cria-se sem querer. É preciso buscar e encontrar soluções criativas, que, em última instância, são as únicas verdadeiramente viáveis se se quer emplacar um bom texto.
É sempre possível, contudo, aferir a qualidade da tradução. A criatividade não pode ser desculpa para o disparate ou a imaginação desenfreada. Criatividade vigiada deveria ser o lema. A medida da tradução será, em boa extensão, o olhar do próprio tradutor — que, nesse caso, funciona como leitor do próprio texto. O bom tradutor, em sua condição de leitor, saberá avaliar a qualidade do texto traduzido. Não se pode, claro, confiar apenas na própria leitura do tradutor. Mas esse será o primeiro índice de qualidade, que deverá ser referendado adiante por outros leitores/revisores/editores.
O olhar de leitor funciona como espécie de autocensura. O primeiro crivo por que passa o texto. Se passa daí, não quer dizer que é definitivo, mas, apenas, que superou um primeiro obstáculo. Outros deverão vir, até que o texto assuma forma aceitável. Autocrítica é a melhor atitude do tradutor, como, aliás, dos escritores em geral.
Mas não há autocrítica suficientemente forte para superar os desvãos e os deslizes da memória. Há também que haver flexibilidade, para compensar, com criatividade, as lacunas naturais abertas pelo distanciamento. Traduzir é lembrar, mas a lembrança supõe, antes de tudo, certo esquecimento. É o esquecimento mesmo que fará valorizar a boa lembrança, assim como a tradução poderá valorizar o original.
Os textos se vão construindo — nessa rede de lembranças e esquecimentos — em camadas superpostas de leituras. O original mesmo é resultado de uma rede complexa de leituras, recordações e olvidos. A sedimentação do original é quase sempre processo complexo, que passa pelas várias leituras do autor, de seus primeiros leitores e editores. Após publicado, com a distância no tempo, pode ser às vezes difícil “estabelecer” o texto — diante de vários “originais” de épocas e editoras diferentes.
As leituras se sucedem de maneira caótica, produzindo, no limite, um texto “original” diferente para cada leitor. A leitura do tradutor — e o “estabelecimento” de um novo texto — é um passo mais nessa escada. Escada que desce não apenas em espiral, mas que se bifurca literalmente a cada degrau. Valei-nos!