Brás Cubas redivivo

A versão em inglês do clássico de Machado de Assis é também uma oportunidade para se pensar o trabalho de tradução
Machado de Assis por Ramon Muniz
01/11/2024

A cada geração cabe traduzir novamente os clássicos. O clássico de que pretendo tratar é Memórias póstumas de Brás Cubas, publicado em 2020 como The posthumous memoirs of Brás Cubas, pela Penguin Classics, com tradução, introdução e notas da americana Flora Thomson-DeVeaux.

Trata-se de uma tradução caprichada, para dizer o mínimo, resultante de um longo trabalho de Thomson-DeVeaux, que nele investiu quatro anos, durante seu curso de doutorado. Além da introdução e das notas de fim de página, a tradutora inseriu na edição dois outros textos ancilares: uma nota sobre a tradução e outra sobre as próprias notas de fim de página.

Esse conjunto de textos acessórios propicia um panorama amplo e profundo do esforço de tradução empreendido por Thomson-DeVeaux. A tradutora comenta haver esquadrinhado minuciosamente o texto de Machado de Assis, lendo, relendo, desmontando palavras e examinando suas sílabas por todos os ângulos possíveis e imagináveis, antes de remontá-las e encaixá-las na tradução.

Todo esse trabalho de revolver o texto inspirou a tradutora a desenvolver mais uma bela cogitação sobre o ofício, amparando-se na célebre metáfora de Cervantes que, por meio de seu personagem Dom Quixote, assemelha a tradução ao avesso de uma tapeçaria. Thomson-DeVeaux torce a metáfora para extrair dela um sumo positivo: ver o avesso permite entender o processo de tessitura/escritura, identificar pontos controversos e ambíguos e até vislumbrar as intenções do autor. Eis aí uma visão interessante do processo tradutório.

A tradutora também assevera haver realizado, depois de concluir sua tradução, processo de comparação com o original e com três outras traduções inglesas preexistentes — trabalho que certamente lhe forneceu elementos relevantes para aperfeiçoar o texto final.

A tradutora também decidiu complementar sua versão com os textos excluídos ou alterados, pelo próprio autor, entre a publicação em folhetim e a primeira edição em livro. Esse trabalho, que certamente representou carga adicional considerável, confere visão mais ampla da obra de Machado de Assis, apontando os aperfeiçoamentos operados pelo autor entre a primeira publicação e sua impressão em livro. O próprio Machado menciona essas mudanças no prólogo à terceira edição (1896): “A primeira edição destas Memórias póstumas de Brás Cubas foi feita aos pedaços na Revista Brasileira, pelos anos de 1880. Postas mais tarde em livro, corrigi o texto em vários lugares”.

A tradutora faz uma defesa apaixonada do uso de “notas do tradutor” e, em especial, no caso de Brás Cubas, das notas de fim de página — mais adequadas, segundo ela, em razão do apuro exibido pelo autor — ex-tipógrafo — na edição do livro, no qual nada se vê obstruindo as margens.

Uma das notas, em especial, chama a atenção do leitor. Trata-se da última frase do capítulo LXXVII: “Era claro que me enganara”. Espreita aqui, como em Dom Casmurro, e por trás da ironia, a sombra da traição e do ciúme. Lá como cá, prevalece a ambiguidade, para desespero do tradutor. Na nota, a tradutora aponta duas possibilidades: Brás Cubas se enganara; ou Virgília enganara Brás Cubas; mas, no texto, ainda que de forma passiva, acaba optando pela segunda — que, arrisco, não seria a interpretação intuitiva do leitor brasileiro. Mas vejamos pelo lado positivo: na tradução o leitor é induzido à reflexão — como tivera que fazer a própria tradutora. Também para isso servem as traduções.

Crítica à tradução, se é que deveria haver alguma, poderia fazer-se a certa pulsão pela explicação, que se nota aqui e ali no texto, alongando a frase curta de Machado e impondo ao leitor, talvez inadvertidamente, o entendimento que a tradutora construiu do original. Mas isso também faz parte do jogo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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