A tradução como aproximação

A tradução, ponto crítico da filosofia em círculos pós-estruturalistas, operação básica do pensamento humano, continua a ser encarada por muitos como uma espécie de filha bastarda da literatura
01/11/2000

A tradução, ponto crítico da filosofia em círculos pós-estruturalistas, operação básica do pensamento humano, continua a ser encarada por muitos como uma espécie de filha bastarda da literatura. É concepção que nasce da ausência de reflexão detida e certamente de um pensamento reacionário que se insurge contra a ameaça de uma espécie de contradição em termos que seria o “relativismo absoluto”. É a velha divisão essencialista que opõe original (perfeito) a tradução (imperfeita). Os próprios tradutores e críticos de tradução, porém, são os maiores culpados pela perpetuação dessa idéia.

Recentemente, tivemos mais um exemplo disso nas palavras de José Arbex Jr. (Folha de S.Paulo, 2/9/2000), num texto seu sobre nova versão em português de Memórias do Subsolo, de Dostoiévski, realizada por Boris Schnaiderman. Arbex Jr. não inova ao dizer, inspirando-se em Schnaiderman, que a tradução “é sempre uma relação imperfeita de aproximação, algo que se aprimora com o tempo”. Eis aqui mais uma metáfora que coloca a tradução num patamar inferior ao do original, numa competição desigual em que desde o início se sabe que o original é imbatível. As metáforas são inúmeras, algumas tão criativas quanto prejudiciais ao status da tradução — tanto que renderiam assunto para uma nova coluna.

Aceitar que a tradução seja mera “aproximação”, e não criação em todo o alcance de seu significado, é rebaixar sem razão o ofício do tradutor. A tradução se baseia, sim, no original, mas é insensatez achar que visa a igualá-lo, a copiá-lo como num decalque. Tradutor é um tipo específico de escritor, e nisso podemos chamar em nosso auxílio Octavio Paz, para quem “a tradução é uma função especializada da literatura.”

Schnaiderman peca, talvez, ao enxergar as suas três sucessivas traduções de Memórias do Subsolo como um processo de aproximação. Para ele, a terceira é superior às duas anteriores. O julgamento, porém, parece precipitado. Primeiro, não há razão para fazê-lo. A primeira, realizada em 1961, foi feita por “outro” tradutor com base em “outro” original. Quem se escandaliza ao ler isso poderia consultar a introdução que Érico Veríssimo fez à edição de 1970 de Um Certo Capitão Rodrigo (livro escrito em 1948). Ali o escritor, numa jogada literária realmente genial, se coloca como mero visitante de sua obra — não mais como dono da obra, mas como quase um estranho ao texto que, de fato, foi escrito por “outro” autor.

Como então comparar traduções sucessivas, como faz Schnaiderman, e colocá-las em condição de subordinação — a mais nova sobrepondo-se às mais antigas —, numa escala cujo objetivo seria alcançar a perfeição do original? Acho, sim, que as traduções sucessivas de um mesmo (?) texto, ainda que realizadas por um mesmo (?) tradutor, são obras intimamente ligadas a um momento histórico. Não se pode compará-las com vistas a traçar um processo teleológico cujo fim é a exatidão do original.

Aliás, qual é mesmo o original? Um texto composto por Dostoiévski por volta de 1863. “Composto”, sim, pois todo texto é mesmo compósito, nunca é obra de um só autor, mas encadeia-se numa série infinita de citações. As três traduções de Schnaiderman não são três tentativas de imitação de um original, no sentido de uma maior aproximação. São três momentos criativos distintos, frutos de três conformações intelectuais distintas de um mesmo homem.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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