Steiner, tradução e a eternidade dos inícios

Um novo livro de George Steiner faz estourar um caudal irrefreável de idéias
George Steiner, autor de “Lições dos mestres”
01/06/2001

Um novo livro de George Steiner faz estourar um caudal irrefreável de idéias. O escritor francês, importante crítico literário, trata das “gramáticas da criação” (Grammars of creation), abordando a infindável discussão sobre a natureza do ato criador, a própria possibilidade de existência de criação ou inovação. Criar é inovar ou reciclar algo já existente? Qual a relação entre o ato criador e o nada que antecede a criação? Seria o ato criador um ato que corrompe a pureza original do nada?

Num salto para outro campo, seria a tradução corrupção de um original? Steiner analisa essa questão, e muitas outras, noutro livro seu intitulado After Babel — aspects of language and translation. Numa passagem inspirada, Steiner atribui raízes religiosas à eterna questão da possibilidade da tradução. Como é possível traduzir (digo, traduzir com perfeição), se a Palavra é carregada do sagrado e do divino? Como transportar o sagrado e o divino através das fronteiras interlingüísticas?

Ou como encontrar uma passagem entre uma língua e outra, passagem que permita a transposição da Palavra para outro idioma, certamente inferior? Haveria essa passagem? Havendo, não seria impiedade utilizá-la?

Steiner capta com perfeição o dilema vivido pelo tradutor, premido entre a necessidade de traduzir, a teórica impossibilidade de fazê-lo e ainda o risco da acusação de ousadia, blasfêmia, impiedade. Não é à toa que o tradutor do livro bíblico Eclesiástico pede desculpas, no prólogo, pelo “enfraquecimento” das expressões originais, a despeito de todo o seu esforço de interpretação. “Não só este livro, mas a própria Lei, os Profetas e o resto dos livros têm grande diferença nos originais”, sentencia o tradutor lá pelos idos do século II a.C.

A noção de um aspecto corruptor da tradução, ou da criação a partir de um nada primordial perfeito, proviria da atribuição de um caráter divino à Palavra. Que fazer com Ela? Cria-se uma tensão insolúvel. Intraduzida, não produz frutos; traduzida, inevitavelmente se corrompe. Traduzir é como abrir a caixa de Pandora: a deturpação da Palavra como origem de todos os males.

Ou, um passo além do tradutor do Eclesiástico, mas no compasso de Steiner, a tradução não apenas enfraquece, mas torna vulgar, reles, ordinário o que era sagrado, elevado, sobrenatural. A tradução é um fator entrópico: aumenta a desordem, desorganiza, separa, confunde.

Mesmo necessária a tradução da Palavra, ai daquele por quem Ela é traduzida. Disse Paulo das palavras que certo homem ouviu no paraíso: não é lícito ao homem repeti-las. Palavras divinas em idioma mortal só podem mesmo acabar em corrupção. Comparada a um original divino, como a tradução dribla o escândalo?

Steiner é brilhante em suas análises, seus insights. O artifício de encontrar na tradução da Palavra o estigma atual da tradução é quase divino. Vê-se nisso, talvez, além de um evidente amargor, certa ironia. O divino original, intocável… quem se atreve a corrompê-lo para o difundir?

Steiner abre seu Gramáticas da criação dizendo que não temos mais inícios. Termina com a louvação da eternidade dos inícios. Para mim, melhor o fim: a cada início, uma nova tradução.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho