Portas abertas

Chega uma hora na vida que temos força e coragem para desenhar as próprias portas, fazer um riscado no espaço e criar a abertura
Ilustração: Eduardo Mussi
06/10/2024

Há alguns meses, pela terceira ou quarta vez, tentei bater em uma porta que ameaçou se abrir e logo se fechou. Sondei novamente a possibilidade de expansão do meu trabalho por esta via que não se abre. Decidi (espero que tenha decidido mesmo) não insistir mais neste caminho e experimentar outras rotas. No meio de tudo, a ideia de criação do meu próprio selo literário surgiu com força e meu planejamento decolou. Entendi que nem sempre precisamos bater em portas que já existem, são pesadas e lacradas, abrem-se para muitos e não para você, ok, mas não se pode entender algumas negativas assim como em vários momentos sublimes não entendemos súbitas aparições de clareiras onde não vislumbrávamos nada anteriormente.

Ao longo da vida foram várias portas insistentes fechadas. Me lembro de um dia, recém-formada, com um currículo mirrado nas mãos, fiquei horas (umas cinco horas) sentada na recepção de uma sede de televisão em Juiz de Fora. Eu nunca gostei da ideia de trabalhar em televisão, mas precisava muito de um emprego. Até que por fim o diretor apareceu, mal me olhou, mal olhou o currículo e não me lembro se me disse alguma coisa que eu deveria entender como “aqui não tem vaga”. E assim foram várias negativas até que finalmente entrei para o jornal da cidade, tive uma excelente experiência por lá, não sem antes ficar alguns anos à espreita de uma vaga. Nada nunca foi fácil.

Claro que, em contrapartida, outras portas se abriram com facilidade. Sempre quando eu menos imaginava. Mas, chega uma hora na vida, sobretudo depois dos 50, que a gente já tem força e coragem para desenhar as próprias portas, fazer um riscado no espaço e criar a abertura — se alguma porta insiste em se manter fechada, vamos criar as nossas portas da forma como quisermos. Seremos os donos deste “portal” imaginário e, quem sabe, daremos passagem a muita gente talentosa.

Durante um bom tempo fiquei tentando entender o motivo das portas fechadas. Tentei suprir todos os requisitos para que me abrissem. O que o outro autor tem que a minha carreira não tem? Isso precisa ser esquecido. Nunca saberemos ao certo. O importante é manter o foco no nosso trabalho e na excepcional capacidade que temos de desenhar portas no espaço que se abrem porque somos nós que estamos no comando. Quando a gente abre a porta que a gente mesmo desenhou, o sabor da conquista é muito maior.

Estou de volta àquela salinha da recepção da televisão que não me aceitou quando eu tinha 20 anos e me sinto incrivelmente feliz, aos 55, por não ter entrado onde eu não queria. Vejo quantos caminhos muito melhores se abriram logo depois e me conduziram até onde estou agora: com força, inspiração e coragem para abrir várias outras portas imaginárias no meu espaço de criação.

Claudia Nina

É jornalista e escritora, autora dos infantis A barca dos feiosos, Nina e a lamparina, A repolheira Ana-Centopeia, entre outros. Publicou os romances Esquecer-te de mim (Babel) e Paisagem de porcelana (Rocco), finalista do Prêmio Rio. Assina coluna semanal na revista Seleções. Seu trabalho mais recente é a participação na antologia Fake fiction (Dublinense). Alguns textos da coluna da Seleções estão no seu podcast, disponível no Spotfy, lidos pela própria autora.

Rascunho