A fruta fresca, a flor de baunilha, a água na fonte

A necessidade de os leitores deixarem de lado os guias, os gurus, e perderem-se sem roteiros ou mapas pelo vasto mundo da literatura
Ilustração: Mariana Ianelli
28/09/2024

Nosso poeta Mario Quintana, com sua leveza marota, era mesmo de uma acuidade extraordinária. Cada delícia de verdade que encontramos em suas boutades… Se alguém ainda não conhece essa, sinta só que maravilha: uma professora pergunta para o poeta o que deveria ler para conhecer Shakespeare, ao que o poeta devolve sem pestanejar: “Shakespeare”.

Muito bom saborear agora esse gracejo do poeta, em meio a tantas “leituras guiadas” borbotando por aí. Então é preciso que alguém nos guie pelas veredas dos livros? Então vamos todos em fila, como numa excursão de turistas, no encalço do “leitor-guia”?

Quintana das sabedorias elementares, por amor, nos acuda! Onde estão os leitores sem guias nem mapas?, os ávidos autodidatas, erráticos e intuitivos de atenção tentacular, os que se embrenham por entrelinhas, e descem aos abismos, e se apaixonam, e no caminho do que leem vão imprimindo suas marcas de enredo próprio, seu cheiro, sua trama de associações particulares, indo e vindo pelas páginas no seu passo torto e na dificuldade quiçá menos devida ao teor da leitura do que a uma eventual incorrespondência entre certas palavras e a vida…

Erico Verissimo, quando viajou ao México em 1955, viu nas ruelas de Taxco as ruelas de Ouro Preto e, nos anjinhos mexicanos de pele morena, os querubins mulatos do mestre Ataíde. Na capela do Rosário, em Puebla, evocou a igreja de São Francisco de Salvador. No parque Chapultepec, viu diante dele um quadro vivo de Brueghel. Recortes de um olhar próprio, de uma leitura particular, isso era o que Erico fazia diante de inúmeras possibilidades de “leitura guiada” desse México infinitamente misterioso, pré-cortesiano, colonial, barroco, mourisco, mágico, cristão dos cristos indianizados.

Outro exemplo de olhar próprio é o de Lívia Paulini, tradutora dos poemas de Henriqueta Lisboa para o húngaro, que viu no pastor de um poema de Henriqueta os pastores muito simples de sua terra natal, e reconheceu nessa poesia todos os elementos que os poetas clássicos húngaros preconizavam para uma “visão poética completa”. Uma leitura que, podendo se cruzar aqui e ali com a visão de outros críticos e leitores, traça um caminho próprio, de reminiscências e especulações pessoais.

Hoje vemos circular o termo “leitor ativo”, de fabulosíssima redundância. E o “leitor entregue à própria sorte”, será que pega? Se não pegar o termo, perigosamente livre, basta a prática. É depor a bandeirinha de excursão, perder-se de guias e roteiros, e provar por conta própria Shakespeare nas peças de Shakespeare, a fruta fresca e não processada, a flor de baunilha e não a gota de aroma idêntico, a água na fonte.

Mariana Ianelli

Nasceu em São Paulo em 1979. Formada em jornalismo, mestre em literatura e crítica literária, estreou na poesia em 1999 com Trajetória de antes. Em 2013, estreou na crônica com Breves anotações sobre um tigre. É também autora de dois livros infantis. Desde agosto de 2018, edita a página Poesia Brasileira no Rascunho. Escreve quinzenalmente, aos sábados, na revista digital de crônicas Rubem.

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