O filósofo e ensaísta alemão Walter Benjamin, homem da Escola de Frankfurt, foi uma das grandes cabeças do século 20 que se dedicaram, na prática e na teoria, à tradução. Traduzir, traduziu. Chegou a viver disso na Alemanha, antes de fugir dos nazistas. E produziu, dentre outros, um dos textos mais comentados e estudados entre teóricos, estudantes e estudiosos da tradução.
O texto — A tarefa do tradutor —, traduzido por Susana Kampff Lages, foi o escolhido pelo professor de língua e literatura alemã Werner Heidermann para fechar o primeiro volume dos Clássicos da teoria da tradução. É de fato um fecho de ouro, texto polêmico e inovador sob muitos aspectos, e detonador de um verdadeiro caudal de discussões.
Benjamin não é exatamente um crítico fácil de entender e explicar. Crítico que acolheu forte influxo de idéias religiosas, seu texto parece deslizar, meio perigosamente, sobre o fio cortante de uma certa contradição. Texto fendido, como fendida é, talvez, a tarefa do tradutor. Tradutor: autor e traidor? copista e conformista? Nem sempre é preciso decidir, especialmente quando se pode apenas sugerir, de leve, com a sutileza dos dissimulados. O tradutor sugere sentidos que, mais tarde, algum leitor acata, outro não.
Benjamin era às vezes taxativo e ousado: a tradução é uma forma própria, e a tarefa do tradutor é uma tarefa própria, que consiste em descobrir a intenção. Do autor?, do original? Seja como for, a intenção. E, descoberta a intenção, o original desperta na nova língua. Missão cumprida, tarefa levada a bom termo.
E a intenção do escritor é intuitiva, enquanto é ideativa a do tradutor. O primeiro joga com a imaginação solta, o outro joga com o raciocínio atento. Criação e cálculo entram no jogo tenso que opõe, na arena da escritura, autor a tradutor. Não é um jogo fácil de resolver, e se o autor detém o quase monopólio da centelha da criação, a tradução, forma própria, reivindica para si — como resto, mas resto nobre — a inglória tarefa de quase alcançar a “pura língua”. Tocá-la e não poder transmiti-la — que tudo o que é transmitido é justamente o restolho numa tradução. Benjamin era, às vezes, quase místico, na ideação de uma “pura língua”.
Mas também cético quanto à possibilidade de semelhança entre tradução e original. Absolutamente antimenardiano, Benjamin via como ideal não a tradução que igualasse exatamente o original, como o Pierre Menard de Borges, mas aquela que representasse a sobrevida do original. Não o texto empalhado, imóvel e petrificado para a posteridade, mas o texto vivo, abundantemente vivo, vivo da vida que se acha na transformação e na renovação. O texto inseminado e irremediavelmente túrgido de sentido, tanto que transborda do papel ao mero contato dos olhos do leitor.
Não sei. Benjamin dava uma no cravo, outra na ferradura. Era na verdadeira tradução que o original encontrava seu “mais tardio e vasto desdobramento”, mas, ao mesmo tempo, a mesma tradução jamais poderia significar uma vírgula sequer para o original. E mesmo os sentidos, tão fluidos e tão ágeis, são menos fluidos e ágeis no original que na tradução.
Genial, sem dúvida, a oscilação tão plena de coerência do pensamento de Benjamin, e, acima de tudo, genial um texto que provoca louvor e atiça a contestação. Sou um que aplaude e contesta.