Que falta faz a teoria da tradução?

É ou não é necessário o recurso à teoria na hora de traduzir?
01/10/2002

É ou não é necessário o recurso à teoria na hora de traduzir? Tradutores, críticos e teóricos de tradução não chegaram a nenhum acordo a respeito, mas não deixemos de especular. Não sem um pouquinho de maldade, poderia arriscar dizer não ser mera coincidência o fato de um dos maiores escândalos da tradução brasileira contemporânea ter sido provocado por alguém que explicitamente esnobou a importância da teoria tradutória.

Longe de mim desdenhar da obra de Robert Scott-Bucchleuch, ex-professor de inglês na Universidade de Brasília, tradutor para o inglês de clássicos da literatura brasileira como Triste fim de Policarpo Quaresma, São Bernardo e A bagaceira. Mas foi justo na tradução daquele que é considerado por muitos o melhor livro do melhor escritor do Brasil, Dom Casmurro, que esse escocês de nome quase impronunciável cometeu seu melhor deslize. Os críticos de tradução não o perdoaram. E é mesmo essa a sina do tradutor: se a tradução é boa, não fez mais que a obrigação; se é ruim, malho no autor da bagaceira.

Não é que Scott-Bucchleuch teve o desplante de suprimir não sei quantos capítulos da obra-prima do Machado? Acreditam? Pois fez, e não contou pra ninguém. Mas descobriram. E fez-se alarido grosso na grande imprensa. Achou que não faria falta. Eu, desatento, li a tradução, antes do alarido, e nem me toquei. Afinal, eram apenas nove capítulos, daqueles capítulos curtos do Machado… Heresia pura para os puristas.

Scott-Bucchleuch não ligava muito para essa coisa de teoria de traduzir. Tinha lá ele suas próprias teorias. Poucas, mas fundamentais, confessava. Estudar a fundo a teoria tradutória? Só se fosse por mera curiosidade. Necessidade mesmo não sentia. O importante era a simpatia, a afinidade que o tradutor nutrisse pelo autor. A medida de uma boa tradução? Que o novo texto soe natural, flua leve e solto, sem arranhar o ouvido, como arranha o texto que se revela abertamente tradução. Dom Casmurro certamente fluiria melhor em inglês sem alguns daqueles cacetes capítulos curtos. E sem essa de narrar adeuses ao velho Pádua, que só serviriam para aborrecer o pragmático espírito inglês.

Faltaram os capítulos, faltou uma certa transparência, faltou quem sabe uma teoria que lhe desse (ao Bucchleuch) um bom argumento. Mas a falta não espanta, provocada por quem diria que um pouco do original sempre será perdido. Pensava ele já no perdão que, certo, viria, se soubesse “captar e transmitir o espírito essencial do original, com fidelidade absoluta às intenções do autor”. O perdão não veio, parece. Faltaram capítulos, faltou teoria?

Faltas, lacunas, existem mesmo para ser supridas. Ano passado uma dessas nossas lacunas começou a ser preenchida. Numa iniciativa feliz e amplamente meritória, o Núcleo de Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina lançou a antologia bilíngüe Clássicos da teoria da tradução — volume 1 — alemão-português. Já estão anunciados volumes também bilíngües com texto original em inglês, espanhol, italiano e latim, entre outros.

É bom material para reflexão sobre o “processo pelo qual boa parte da cultura humana nos é transmitida”, como se pode ler na quarta capa. Se a “variedade dos aspectos da teoria da tradução é quase infinita”, como diz o organizador da obra, professor Werner Heidermann, é bom começar logo a leitura… pra perder o menos possível. Então, aos alemães: Goethe, Schlegel, Nietzsche, Schopenhauer, etc. Mais mês que vem.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho