O lado mais humano do texto

Ninguém mais simpático à tradução e seus azares que os mais isolados
01/05/2002

Ninguém mais simpático à tradução e seus azares que os mais isolados. Lá do alto de seu isolamento, Pushkin, jovem poeta russo do século 19, domesticava o romantismo de Byron, mitigando quem sabe seu natural apartamento das coisas européias. Dizia ele que o tradutor é o mensageiro do espírito humano.

Não é lá muito fácil definir o que é “espírito humano”, mas, seja o que for, é isso que parece, sorrateiro, insinuar-se nos textos para lhes soprar vida. O tradutor surge como o mensageiro, aquele que leva, anuncia, às vezes pressagia. Ou apenas sugere. É o meio da mensagem e também parte da própria mensagem. É o lado mais humano do texto.

Não há escapar a toda essa humanidade. Quem poderia? Tenta-se, é verdade, com alguma hipocrisia, doses mínimas de perspicácia. O destino humano é remontar as coisas, os quebra-cabeças, as tramas e os enredos (Rosemary Arrojo). Recontar as mesmas histórias de novos ângulos. Inventar novas óticas, urdir novas teias com fios velhos.

Se o tradutor se atira à triste missão de buscar uma reprodução exata, uma versão perfeita, se mergulha na busca do impossível, mesmo que o resultado só possa ficar aquém do desejado, ele assim se revela mais humano. Se revela tão humano quanto é humana sua leitura ao mesmo tempo única e solidária de um texto. Confirma sua condição, de qualquer modo inescapável, de o lado humano do texto.

Que o texto, feito de tinta e papel, carvão e pedra, tela e pontos luminosos, tem dois contatos com o humano. Nasce na idéia do autor e morre na frieza do papel. Ressuscita no calor do contato com o leitor ou tradutor, para logo morrer novamente no limbo da memória ou noutro fraseado à espera de decifração.

O texto sempre renasce pelas mãos redentoras do leitor. Idéias trafegam trôpegas pelo tempo, à cata de alguém que lhes dê credibilidade e suporte. Esta mesma idéia — o tradutor é o mensageiro do espírito humano —, quantas traduções não teve de sofrer para chegar até aqui? A quantas traduções estaria ela de nós?

O tradutor funciona como o lado mais humano do texto, aquele que o tira do papel e lhe dá feições e cacoetes característicos da humanidade. Lhe dá imperfeição, distorção. Lhe dá o ruído mais rascante ou melodioso, lhe refrata a imagem, lhe deturpa o sabor. E distorção, que antes era falha, agora não é falha, mas norma — diria a teórica de tradução Joanna Bankier.

O tradutor, lado mais humano do texto, opera numa linha de falhas, em que falhas são a norma. Ele mesmo capta a distorção e a amplifica. Mas e se a capta para abafá-la? E se a desconsidera? Ruídos naturais da comunicação humana, na qual a perfeição desaloja o entendimento, na qual uma fidelidade excessivamente alta prejudica a compreensão. O ideal, como idéia fixa, prejudica o desfrute do possível, amarga um sabor que, mesmo sem muita doçura, estaria longe do insosso.

Mensageiro do espírito humano, o tradutor vive as agruras de não se saber essencial à rolagem do texto-tempo. Espremido entre a pressão pela cópia e a necessidade de vazão da criatividade, quase não se reconhece, como o poeta (Pushkin?), antena da raça.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho