Tradução: essa longa história de (in)fidelidades

Lêdo Ivo, sem papas na língua, é cruel: apesar de ser a fidelidade “o ponto de honra dos tradutores”, “a história das traduções é na verdade uma longa história de traições e infidelidades”
Lêdo Ivo, autor de “O canário azul”
01/03/2002

Lêdo Ivo, sem papas na língua, é cruel: apesar de ser a fidelidade “o ponto de honra dos tradutores”, “a história das traduções é na verdade uma longa história de traições e infidelidades”. De fato, uma história instigante, provocadora, despertadora de paixões. História, aliás, que está para ser escrita, especialmente a história brasileira das traduções. E nela o tema da fidelidade teria, como em qualquer discussão sobre tradução, lugar de destaque.

O grande problema, como atinou o tradutor Donaldo Schüler (ele mesmo, o homem que tomou a peito a tarefa de traduzir o intraduzível Finnegans Wake, de Joyce), é serem muitas as fidelidades. São legião. A que mesmo deve o tradutor ser fiel? Rosemary Arrojo, teórica da tradução, perguntava em 1993 a que são fiéis tradutores e críticos de tradução. A resposta? A suas concepções teóricas sobre tradução, sobre a essência da literatura — ou, esticando até quase esgarçar o raciocínio, sobre a própria noção de Arte.

Schüler afirmava outro dia, num artigo sobre a tradução da Ilíada por Haroldo de Campos, que tradução fiel não existe. A tradutora e professora de teoria literária Helena Parente Cunha defendia, no início da década de 80, que fidelidade (“no sentido exato da palavra”) não existe na tradução. E, no entanto, ela não só existe como são múltiplas. Pode-se, por exemplo, querer ser fiel à língua em que se escreve a tradução. Ou pode-se querer ser fiel à língua do original. Quem sabe, ser fiel ao tempo e à cultura em que se fez o original. Ou então ser fiel ao estilo (rebuscado? debochado? certinho?) do original. Ou ainda ser fiel ao tempo e à cultura do tradutor.

São muitas as fidelidades. A escolha é difícil. À procura da fidelidade mais certa, mais exata, mais fiel — e é importante ser fiel? —, o tradutor pode optar por uma “nova fidelidade”, no dizer de Lêdo Ivo. É o ajustar-se a uma nova realidade. É quando as transgressões encontram suas melhores justificativas: trair para ser mais fiel, mais leal a uma certa fidelidade. Não estamos na era do pós-moderno? Pois qualifiquem-se, disseminem-se as fidelidades.

Criar algo novo, diria o teórico Edwin Honig, é uma forma de fidelidade. Assim o tradutor é fiel quando não apenas buscar imitar, mas quando busca criar, instilar o novo, até quem sabe exceder. Exceder então não seria um excesso inconseqüente, mas uma nova forma de fidelidade. Fidelidade à criatividade. O grande problema, nesse como noutros tipos de fidelidade, reside na transparência.

Ser transparente não é fácil. Exige um pouco de paciência, um tanto de humildade, outro tanto de reflexão. Evitar o automatismo é buscar entender o objeto e o motivo da fidelidade. Explicitar. Deixar claro. Dizer o que se está fazendo. Às vezes, por que não?, abusar de notas de rodapé, prefácios, posfácios, paráfrases.

A importância de ser fiel é esta: legitimar. Qualquer tradução aspira à legitimação. Aspira ao selo de aprovação, nem que seja a auto-aprovação. Fiel a seus próprios conceitos, a sua própria teoria, que é sempre também um pouco do outro. A história das traduções que alguém talvez um dia conte será, sim, cheia de infidelidades mais ou menos inconscientes, mais ou menos intencionais. Mas será também a história de fidelidades obstinadas, do tradutor que aposta todas as fichas num ideal de arraigada literariedade, de impetuosa inventividade, de aborrecido mecanicismo, de teimoso adaptacionismo. Realmente, há muitas fidelidades. Leitores e tradutores que escolham a sua.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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