Tradução, essa terra do estranhamento

A tradução é o campo por excelência do estranhamento
01/02/2002

A tradução é o campo por excelência do estranhamento. Eis aí um sentimento inescapável em quase qualquer tradução. Estranham-se palavras, referências culturais, épocas e locais distantes, estilos, maneiras de ver o mundo. Estranham-se estilos de traduzir, idiossincrasias do autor, caprichos do tradutor. Estranham-se, às vezes, por que não?, tradutores e críticos de tradução.

Diria o professor de teoria literária Sérgio Bellei que traduzir é tomar posse do alheio a fim de domesticar o estranho e o distante. Na domesticação, porém, mesmo quando se naturaliza o estranho, mesmo quando se aproxima o distante, resta no texto um travo que amarra, um gosto que não sai, um traço de excêntrico, uma aresta que não se apara nem se desgasta.

Fica sempre um resto de estranhamento, aquela marca indelével e indisfarçável que faz o amargor e a doçura da tradução. E estranheza nem sempre é negativa, talvez quase nunca. É em busca do novo, do diferente, do exótico, ou outro nome qualquer que mereça — é em busca do estranho que muitos saem pelo mundo a viajar, delícia do turista e do caçador de aventuras. É também no estranho, no esquisito até, como forma de chamar atenção ou de extravasar sua força criativa, que muitos autores apostam muitas de suas fichas.

Outras vezes o autor nem delibera, mas é carregado como em enxurrada, o texto quase se adiantando a ele. Diria Freud que “o trabalho avança como pode e com freqüência se apresenta a ele [o autor] como algo independente ou até mesmo estranho”. A estranheza às vezes é do próprio autor, surpreso com uma obra que ele não moldou a sua exata semelhança, mas que lhe saiu, desde o início, insubordinada, arisca e rebelde. Saiu-lhe não como ele queria, mas como ela podia. Que mesmo os textos têm seus limites, por mais elásticos, e até suas vontades.

O alemão lê com estranheza os descaminhos de Riobaldo pelo sertão, o brasileiro se deleita ou se surpreende com as peripécias de Rosa pela linguagem. No alemão, porém, não só a tortu-engenhosidade da linguagem, mas a própria noção de sertão é estranha ao leitor. A tradução de outro autor brasileiro, digamos Paulo Coelho, talvez provoque no leitor europeu menos estranheza. Indício, quem sabe, da qualidade tantas vezes desprezada do estranho, do inusitado.

E há quem censure num texto justo o estranhamento. Não o enxergam pelo ângulo positivo da busca de imprimir no leitor sensações mais bruscas, de arrepio, mesmo de repulsa e irritação. Estranhamento desagrada, é preciso buscar a naturalização a qualquer preço. Domesticar e dominar, mesmo à custa do estancamento da criatividade. Tudo para agradar, lucro pelo lucro, nada de arte pela arte, texto pelo texto.

O texto é sempre do outro, difícil mudar isso. O autor, se volta ao texto, já não o encontra como seu. Érico Veríssimo, voltando a um texto seu, já não se sentia à vontade, aquilo lhe parecia alheio, distante, de outro. Não totalmente de outro, pois na leitura sempre infundimos muito de nosso. Mas certamente de outro. Diria Eliane Zagury que se deve ler o texto do outro como tal. Não como nosso, mas de outro. O outro do autor, o tradutor, nos serve um texto arranhado, dissonante, todo arestado. Todo cheio de estranhamento.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho