A nada desprezível importância da ambigüidade

Ambigüidade não é meramente um importante instrumento de humoristas e políticos. É uma realidade da linguagem que, muitas vezes, não recebe a devida atenção e o merecido respeito
01/07/2002

Ambigüidade não é meramente um importante instrumento de humoristas e políticos. É uma realidade da linguagem que, muitas vezes, não recebe a devida atenção e o merecido respeito. Como fato da linguagem, é ao mesmo tempo obstáculo e instrumento de trabalho do tradutor. Mais obstáculo ou mais instrumento?

A linguagem não termina no signo escrito e vai além, muito além. Não havendo correspondência biunívoca entre signo e significado, desata-se uma disseminação quase desenfreada de imagens, idéias, associações, correlações, significados mais ou menos diáfanos. Conseqüência lógica é a ambigüidade, ou seja, a qualidade da coisa que se pode tomar em mais de um sentido. Não apenas em dois, como sugeriria a etimologia, mas em mais de um. É abrir a caixa de Pandora, erguer a Torre de Babel.

Paradoxalmente, é a própria ambigüidade que possibilita a comunicação verbal humana (Patrick Mahony). Uma língua com mecanismo biunívoco de significação entre os conjuntos “signo” e “significado” seria uma verdadeira camisa-de-força para a linguagem. Cercearia, de maneira irremediável, a matização e a sutileza que compõem a verdadeira alma da linguagem. Sutil é a linguagem quando evoca significados distintos e mesmo díspares, contraditórios. Provoca surpresa, estranhamento, admiração, graça, encantamento, indignação. Mesclas de significados que provocam mesclas de sentimentos.

Impensável a comunicação verbal humana, a conversa, sem ambigüidade. Sua ausência tornaria muito mais árdua a tarefa do político, e deixaria sem graça o humorista. Pode-se pensar, talvez, em línguas artificiais que reduzissem o espaço da ambigüidade. Proporcionalmente, se reduziria o espaço da sutileza e da inventividade.

A tradução, como operação-mestra da linguagem, é uma atividade sempre dependente das múltiplas conseqüências da ambigüidade. Tradutor que não atenta na sempre possível ambigüidade de palavras, frases e textos deixa o leitor a desejar muito mais. Muito mais perspicácia, atenção e pesquisa. A ambigüidade está na comparação de cabedais diversos do conhecimento. Quem mais absorve, mais pode comparar e identificar, e usar, situações ambíguas.

Na tradução, a ambigüidade caminha em dois sentidos. Identificar é uma tarefa, aplicar é outra. Complexas são as duas. A rigor, a ambigüidade é um dado da linguagem, ou seja, não existe linguagem sem ambigüidade: qual palavra ou conjunto de palavras teriam um só significado? De um ângulo mais frouxo, identificar e aplicar a ambigüidade significa ter a capacidade de, lendo nas entrelinhas, correlacionando conjuntos de informações, sacar velhas e novas possibilidades de significação.

A incorporação da capacidade de identificar e aplicar a ambigüidade não é tema pouco importante no estudo e na prática da tradução, e mereceria aulas e aulas, artigos e artigos, livros e livros. A consciência do inevitável surgimento de ambigüidades (na escrita, na leitura e na tradução) é requisito básico para qualquer discussão que se queira empreender no âmbito do estudo e da crítica da tradução. Um abrangente tratado sobre o tema (em português, por que não?) seria uma bela contribuição para tradutores e leitores.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho