“Confundamos”: sobre as origens da tradução

Chega afinal a nossa obscura língua portuguesa (a derradeira sacanagem de Portugal contra o Brasil, na sacada de Leminski) um texto marcante sobre tradução
01/12/2002

Chega afinal a nossa obscura língua portuguesa (a derradeira sacanagem de Portugal contra o Brasil, na sacada de Leminski) um texto marcante sobre tradução. Nos chega, claro, em tradução — tradução de um texto ele mesmo todo feito, não apenas sobre o fenômeno da tradução, mas com base na tradução de um texto de Walter Benjamin sobre tradução. O mesmo labirinto de sempre, em que sempe nos perdemos mesmo sem querer.

Torres de Babel é o título do texto de Jacques Derrida, um estudo que sobrevoa, sem muitos rasantes e com muitas e longas planadas, o conhecido “A tarefa do tradutor”, de Benjamin. Traduzido por Junia Barreto e publicado pela Editora da UFMG, Torres é um texto múltiplo sobre esse fenômeno esquivo e multíplice, que não se deixa amoldar à ciência nem se aceita no campo da arte. Isolado, o fenômeno tradutório confunde, quase como vingança.

Confunde, quase tanto como o próprio texto de Derrida, que entra por descaminhos tortuosos para desaguar num mar de indefinições. Perfeito para um texto sobre tradução! Não é apenas Torre, mas Torres. Múltipla confusão. A própria raiz do hebraico Babel está ligada a um verbo que significa “confundir”. Não uma só confusão, mas incontáveis, como são incontáveis as línguas.

Deus não teve dó nem piedade. Misturou e misturou valendo. “Ali [em Babel] confundiu o Senhor a linguagem de toda a terra, e dali os dispersou por toda a superfície dela”. Foi ato deliberado: “Vinde! Desçamos! Confundamos a sua linguagem para que não mais se entendam uns aos outros”. Verdadeira maldição, a confusão se aprofunda e se resolve na tradução. Elo entre línguas, a tradução é de fato instrumento de resistência e rebeldia explícitas, abençoada afronta ao castigo do Senhor, que confundiu e separou — dispersou espacial e culturalmente.

Tarefa maldita, a tradução, depois de Babel, torna-se necessária e impossível, comenta Derrida. Necessária como único instrumento de intercomunicação entre tantas línguas distintas e mutuamente arredias. Impossível como tarefa cujo resultado jamais satisfará. Veda-se a transparência. Em vez de vidro fino, tela translúcida, quando não superfície quase espelhada — que a tradução sempre busca suportes e referências no mesmo lado de cá do texto traduzido. Que fazer?

Imposta como obstáculo à fracassada tentativa de aproximar-se dos céus, quem sabe de Deus, a multiplicidade tornada em confusão adia um sonho, ou o substitui por outro. A quimera da aproximação física dá lugar a outra, da aproximação entre línguas. O castigo traz o germe da redenção: as palavras da salvação nos chegam por ela, a tradução, que já jazia, em latência, na voragem da confusão.

Despertada, foi como a caixa de Pandora aberta. Que o que seria instrumento de solução acaba, ele mesmo, em si mesmo, foco de tamanha disputa e confusão, que ninguém mais se entende. Único caminho de uma língua para outra, não há tradução que agrade a todos. Sobra sempre um travo de suspeita e inconsistência. São tantas as passagens que a dúvida é a única constante. Deus venceu, vingou a confusão. “Vinde, desçamos e confundamos…”. Quem não sucumbiria?

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho