Tradução, discurso alternativo e marginal

Tradução é arte-e-técnica marginal por excelência
01/05/2003

Tradução é arte-e-técnica marginal por excelência. Em dois sentidos: marginal como forma de literatura, posta sempre para escanteio pela arte literária por excelência, a literatura do autor; marginal como parte indissociável de sua prática, seu ofício – o ato de escrever na margem de um livro maior, o original. Digo isso inspirado na revista de tradução Modelo 19, produzida pela Faculdade de Ciências e Letras da Unesp. Digo isso porque, no texto que abre a revista e que chama a uma valorização do nobre ofício tradutório, vejo, subjacente, a própria imagem da marginalidade de uma arte.

Uma revista dedicada à tradução é, diga-se de passagem, algo já louvável em si. Exercício de resistência e persistência num ambiente culturalmente inóspito – como o é também esta coluna, e, em linhas mais largas, este jornal de crítica literária. Produzir e divulgar cultura neste país – quem o faz sabe, e sofre – não é nada fácil. Produzir e divulgar uma arte-e-técnica que sobrevive à margem da grande cultura é ainda mais difícil.

Traduzir é, em certa medida, escrever à margem. À margem de um texto, à margem de um tempo, à margem de uma cultura. Falta, talvez, a tradutores e tradutólogos assumir com mais ousadia e despojamento essa marginalidade que é parte de seu ofício. A face marginal do tradutor, quando transparente e límpida, até ganha aura de autêntico, original – por contraditório que pareça. Caradurismo que inspira confiança.

Traduzir é inserir-se numa escala hierárquica em que a tradução aparece nitidamente em posição inferior. Não é escrita passiva, pois tende a interferir cortando – às vezes com engenho, com imperícia às vezes – a carne do original. Mas aparece, por assim dizer, “por baixo”. À tradução, por sua natureza dependente, reserva-se papel secundário. Bobagem lutar contra o óbvio. A reação está na atitude do tradutor – perante o original e perante seus leitores. Valorizar o marginal como marginal, não como principal.

Marginalidade tem estreito parentesco com alteridade, a alteridade de que fala texto da Modelo 19. Embora em alteridade a idéia de hierarquia não esteja nítida, o “alter” não seria apenas o outro, mas aquele que é em função do outro. Oriundo do outro. Como a tradução se origina do original, tornando-se, ela mesma, muitas vezes, original – e em mais de um sentido.

Tradução “original” não é necessariamente contradição em termos – pode ser tradução extremamente engenhosa e criativa, e por isso mesmo naturalmente execrada.

A natureza dependente e “alternativa” da tradução gera, quase automaticamente, o despeito do desprezado. Arte alternativa – e marginal -, a tradução vinga como espelho distorcido (propositalmente, na melhor das hipóteses) do outro texto. O outro não existe senão em função de nós mesmos, diria a Modelo 19. Certo: o texto original não existe senão em função de nós, leitores – aliás, não existe senão por meio de tradução.

A manifestação – que pede o editorial da Modelo 19 – do tradutor em defesa de si e de sua obra é um ato de rebelde ousadia. Um brado de quem, clamando no deserto, tem consciência de sua importância e, ao mesmo tempo, da desimportância que lhe conferem. Injusta, aliás. Quem se importa, e qual a importância de que se importem – ou não? Mais vale um ato saudável de atitude – desafio do marginal e do alternativo diante do outro, o principal.

Traduzir nunca foi, mesmo, a menina dos olhos da literatura. Pelo contrário: crítica, é a criticada.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho