As inevitáveis perdas de qualquer tradução

Perda de tempo e papel é voltar a falar nas perdas, tantas e inevitáveis, que a tradução nos apronta
01/06/2003

Perda de tempo e papel é voltar a falar nas perdas, tantas e inevitáveis, que a tradução nos apronta. Perdi tanto tempo traduzindo, e gastei tanto papel, e descartei tantas palavras e sentidos — que deixei à margem, rejeitados pelas incompatibilidades estéticas, estilísticas, contextuais. Sacrifica-se tanto sentido, tanta palavra por evitar anacronismos irritantes. Mas tem mesmo de ser assim.

A tradução é o lugar da perda, e não há melhor lugar para se perder de tudo: atividade envolvente e empolgante em que, ao mesmo tempo, se perde quem faz e se perdem aos montes elementos textuais. Fazer de conta que nada se perde é pura bobagem. Procurar, então, perder o mínimo possível, valeria tentar? Assim, de longe, diria que sim. Melhor que não tentar, e um gesto de saudável boa vontade em direção ao leitor, este ilustre desconhecido.

Formas e formas de encarar. Pensar em traduzir reproduzindo é gerar, de antemão, um volume estonteante de perdas. E, com as perdas, inumeráveis, a saraivada de críticas. Todas muito corretas. Até porque as razões e as escolhas são incontáveis, muitas delas muito boas. Julgar mesmo, que é bom, não me arriscaria. Dá um trabalho imenso, estudos fatigantes, debruçar-se em cima de dois longos textos. É por isso, dentre outros ótimos motivos, que não há crítico de tradução que se ache fácil por aí.

Perder é uma boa forma de traduzir. De saída, e sem escamotear, abrir o jogo e admitir sem meias-palavras: traduzir é risco. Arriscar enfronhar-se fundo no enredo das palavras e dos sentidos. Perder-se é o primeiro ato. Pelo caminho, perder metáforas, jogos de palavras, efeitos, estesias, traços culturais, associações afetivas; sem falar em rimas, aliterações, ritmos, sutis afinações gramaticais, palavras escolhidas a dedo. Sonoridades às vezes belas, às vezes sujas cacofonias propositais.

Tradução, efetivamente, é perda. E grande. Como levar água daqui para ali em balde cheio até a boca. Balança daqui, escorrega ali em frente. Quando não cai com balde, água e tudo. Dar graças se chegar. Às vezes falta paciência, muitas vezes competência — coitado do pobre leitor monolíngüe, preso num mundo em que só come na mão dos outros. Crer ou acreditar.

Às vezes vêm umas compensações. O mais hábil e engenhoso inventa ali na frente a piada perdida três páginas atrás. Num lance genial de imaginação, recria um efeito raro — diferente, mas quase igualmente instigante. Migalhas, talvez, mas nesse perde-ganha qualquer grãozinho é lucro. Salva-se alguma coisa. Tem algo para mostrar e brandir: fiz, criei, diminuí, mesmo que quase nada, o prejuízo que nem depende tanto de mim.

Prejuízo e perda são líquidos e certos. Dizia certo teórico que, quanto menos perdas, melhor a tradução. Nada mais difícil que medi-las. Tanto a quantidade de perdas quanto a qualidade da tradução. Fazê-lo, medi-las, será quase tão difícil quanto a própria tradução sem perdas que se pretende e não se alcança. Meta louvável, mesmo que inatingível.

A desilusão dessa busca inútil, embora inescapável, é a sina sombria do fazedor de traduções. A voz ríspida do crítico, quando há, é quase um consolo se as perdas maiores, aquelas mais evidentes, passam despercebidas. A tradução é mesmo isso. Peneira de perdas, as brechas minando e espirrando sentidos e palavras página a página.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho