A tradução permeia naturalmente as discussões sobre os sentidos e os valores da obra literária. A exegese — no sentido de interpretação crítica de textos religiosos — também muito se escora nesse antigo ofício. Relendo o Sermão da sexagésima, do padre Vieira, vislumbro trechos que instigam cogitações sobre questões tradutórias, envolvendo leitura, interpretação, pregação e os abismos existentes entre as linguagens escrita e oral.
Vieira era um orador poderoso. Seus escritos também exibem coesão e capacidade de convencimento consideráveis. As diferenças entre a palavra falada e o texto no papel são evidentes: se a fala pode convencer com a convicção e a emoção do falante, a escritura exige elementos de outra natureza: mais racionais, digamos.
A interpretação é uma operação elusiva, nos dois casos: de um mesmo texto, escrito ou falado, podem-se tirar conclusões bem divergentes. Vieira aponta esse fato com contundência, penso eu.
No Sermão da sexagésima, o padre português trata da decadência dos pregadores e seus discursos. Ao recordar trechos dos Evangelhos em que o diabo tenta Jesus com textos do Antigo testamento, assinala que mesmo as Escrituras — que “são palavra de Deus” —– podem ser entendidas e aplicadas de formas diversas: “as mesmas palavras que, tomadas em verdadeiro sentido, são palavras de Deus, tomadas em sentido alheio, são armas do diabo”.
A natureza plástica das palavras e do texto permite de fato essas distorções e inversões. A questão é como — e quem pode — definir o sentido verdadeiro e estigmatizar o sentido alheio.
Nem mesmo o Padre Vieira é capaz de elucidar esse ponto, embora tente projetar-lhe alguma luz, recorrendo à interpretação dada às Escrituras pelos Padres da Igreja e ao significado determinado pela “gramática das palavras”. O jesuíta português também admoesta aqueles que tomam as palavras “pelo que toam e não pelo que significam”: diferenciação que pode ser bastante complexa.
Nada é muito simples, tampouco muito claro, pois desembocamos todos, por vários caminhos, em processos interpretativos e tradutórios imprecisos e de resultados quase sempre contestáveis.
Como diria o próprio Vieira, no sermão já citado, “não há juízo sem inclinação”. O juízo que se usa para decidir entre dois pregadores qual o melhor não deverá diferir muito daquele que se utilizará para eleger entre dois significados qual o correto.
O leitor, o pregador, o tradutor têm que tomar decisões difíceis. Nem sempre as decisões são acertadas. O próprio Vieira, em sua diatribe contra os maus pregadores de seu tempo, acaba se confessando ele mesmo ocasionalmente em erro: “Quantas vezes ouço dizer que são palavras vossas [de Deus] o que são imaginações minhas, que me não quero excluir deste número!”.
Refletindo agora sobre a grande distância que separa a fala do texto: como não seria diferente ouvir a pregação do padre Vieira — com todos os adereços que envolvem um bom sermão de um bom orador — em comparação com o que hoje lemos?
Se na linguagem oral pode-se perder algo — ou muito — em razão de trechos mal articulados, mal estruturados ou mesmo pouco audíveis, certamente também se pode ganhar algo — ou muito — em transmissão vibrante e direta de ideias, com o auxílio de recursos extraverbais. Elementos que não se encontram no texto frio — ou que, no papel, dependem da inserção de componentes enfáticos e da participação ativa e/ou empolgação do leitor, para tentar produzir emulação ainda distante da potência da comunicação oral. É uma tradução difícil, como quase todas.