Falta de transparência: o grande e velho charme da tradução

Transparência não é exatamente o forte da tradução
01/09/2004

Transparência não é exatamente o forte da tradução. Quem entra nesse mundo, entra num mundo de opacidade, no máximo translucidez. O que lhe dá um certo charme, um certo encanto que só as coisas que transitam no lusco-fusco provocam.

Quem procura transparência, não se aventure. É um mundo de imagens distorcidas, à cata de um pouco de nitidez. Não há certezas, as balizas são infirmes e cambiantes, as chances de sucesso, mínimas. Eis o mistério dessa arte: a sedução da insegurança.

A falta de transparência não está no texto traduzido, aliás, mas na passagem. É na passagem que a imagem se turva. De um lado e de outro, a nitidez tranqüila de textos, na melhor das hipóteses, escorreitos e cristalinos (quando, claro, a tradução é minimamente honesta). No espaço que os separa, o turbilhão de imprecisões. Todo um jogo aberto de possibilidades.

Trata-se de um jogo cultural, a tradução. A passagem é espaço embaçado, labiríntico, mas é espaço que traz a marca, mais que natural, do choque sempre vibrante de culturas. O tradutor culturalmente mais preparado terá mais chance de resolver problemas e achar saídas. A largueza de visão e a riqueza de referências culturais serão sua arma, mas não seu guia.

A saída mais fácil pode também ser a pior. É preciso inventar, inverter, subverter, escolher com paciência, submeter-se à penitência de esquivar-se do mais óbvio — e por vezes o mais perigoso. Em anúncio deste mesmo Rascunho, número 52, apanha-se um bom exemplo: “The most impressive literary magazine I’ve ever seen”. A tradução mais meramente linear não escaparia de uma coisa mais ou menos assim: “A revista literária mais impressionante (admirável, etc.) que já vi”. Mas saiu isto: “Jamais conheci uma revista literária tão impressionante”.

Talvez não seja o melhor que se possa fazer. Mas é uma bela opção, não há dúvida, pelo tom nitidamente nativo, do português do Brasil, que se conseguiu imprimir. Houve a inversão, houve o lance aventuresco de fugir do lugar-comum. Isso é traduzir. Escapar da colagem, do linear, e trabalhar a linguagem, como o autor o fez no momento de criar o original. Aí sim, trabalho digno de novo autor.

A opacidade que existe na passagem de uma frase para outra é a grande graça dessa operação tão prosaica e sofisticada que chamamos tradução. Não há mapa que te tire lá do meio. Não dá pra navegar por instrumentos. É tudo na base da vista descoberta: olho nu e bem atento. No meio da neblina densa, não há fórmula a que recorrer.

Daí nunca se ter conseguido definir exatamente o que é tradução. Daí nunca se ter produzido um manual decente de tradução. Daí ainda não se ter concebido uma teoria geral da tradução. Daí nunca se ter descoberto critério minimamente objetivo para avaliar a qualidade relativa de duas traduções honestas.

O tradutor é um perdido, irremediável. Não tem bússola, não tem sextante, não tem mapa. Os pontos de referência são escassos e esquivos. A medida do acerto é quase improvável. O erro, e a crítica, são a única certeza à frente. Mas ele insiste. Teimoso como uma mula. Não pode mesmo nunca dar certo.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho