O culpado, como sempre, é o tradutor

No episódio que envolveu o jornalista Larry Rohter (reportagem sobre possíveis hábitos etílicos do presidente Lula, publicada no New York Times), uma coisa chamou bastante a atenção de quem se interessa por tradução
01/06/2004

No episódio que envolveu o jornalista Larry Rohter (reportagem sobre possíveis hábitos etílicos do presidente Lula, publicada no New York Times), uma coisa chamou bastante a atenção de quem se interessa por tradução. Trouxe à baila, novamente, a questão da fidelidade ao texto original. Reclamou o jornalista americano que a tradução de sua matéria (ou “história”, como volta e meia se traduz o inglês “story” para o português…) não teria sido fidedigna. O culpado de toda a confusão — pasmem! — foi na verdade o tradutor.

É instigante pensar que o imbróglio todo foi por causa de uma tradução malfeita. Maneira fácil de explicar, talvez, a má qualidade do texto original. De qualquer forma, o incidente suscita duas ponderações mais ou menos evidentes. Primeiro, que uma tradução malfeita, ou mesmo mal-intencionada, pode de fato provocar problemas consideráveis. Segundo, que o tradutor — o elo mais fraco em uma corrente textual — pode funcionar como bode expiatório para situações em que explicar o conteúdo do original é tarefa complexa.

Curioso que um jornalista — profissional tantas vezes acusado de infidelidade, de ser infiel à fonte, como o tradutor é infiel ao original — tenha utilizado esse argumento. Não que não seja possível haver infidelidade, no jornalismo como na tradução, mas certamente não foi o que houve no caso. O argumento, na realidade, passou quase despercebido, atropelado pela evidência massacrante dos fatos. Alegar infidelidade da tradução àquela altura dos acontecimentos era quase risível.

A tradução malfeita pode, na literatura, afundar um bom texto de ficção em determinada língua, caso a crítica não atente nesse detalhe. Por outro lado, mesmo uma tradução teoricamente bem-feita de um texto ruim pode ser atacada injustamente. A boa técnica tradutória não vai livrar nenhum original ruim de um belo fracasso em outra língua. A criatividade, porém, pode entrar em campo como elemento de aperfeiçoamento — à custa, nesse caso, da “fidedignidade” ao original.

Na tradução de um texto jornalístico, a questão da fidelidade ocupa lugar de enorme importância — muito maior do que no caso da tradução literária. A objetividade que se exige do texto jornalístico espanta a aventura de inserir o elemento de criatividade. Na literatura, a discussão sobre a qualidade do texto traduzido muitas vezes se desloca da noção de fidelidade para a de inventividade. Recriar, na tradução da literatura, passa a ser mais importante que apenas transferir. O espaço de atuação do tradutor ganha larguras de quase autoria, enquanto no jornalismo só lhe resta a transposição o mais “correta” possível.

Na distinção que se pode fazer entre tradução de textos jornalísticos e de textos literários sobressaem conceitos estéticos: elegância, expressividade, beleza. No jornalismo, a beleza não ocupa espaço tão proeminente; em seu lugar, destaca-se a objetividade, a correção, a concisão, a imparcialidade. Na literatura, o desejo de provocar emoções, de evocar sentimentos de gratificação estética, é muito mais evidente.

Aí a tradução pode dar uma contribuição importante à corrente textual — que parte do autor do original para desembocar no leitor da tradução. De fato, talvez seja este o único móvel válido do tradutor: o desejo de contribuir para o aperfeiçoamento de um texto, de acrescentar ali um novo lampejo criativo, de descobrir uma nova maneira de ler o mesmo velho livro.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho