Tradutor: malvisto, mal pago, maldito

Não poucas vezes falei neste espaço mais sobre a figura do tradutor, suas agruras e venturas, do que sobre a tradução em si
01/12/2004

Não poucas vezes falei neste espaço mais sobre a figura do tradutor, suas agruras e venturas, do que sobre a tradução em si. A trajetória da tradução se confunde com as trajetórias individuais dos homens e mulheres que a fazem. Isso é óbvio. Mas o destaque dado à pessoa do tradutor não é excessivo. Eis aí um tema sempre curioso, sempre importante, mas sempre adiado para amanhã.

São muitas as possíveis definições de um tradutor — esse ser que, ao executar uma tarefa quase diáfana, algo que se desmancha no papel que embebe a tinta, traz sobre si uma qualificação sempre imprecisa. A mais famosa, aquela contida no famoso trocadilho italiano, é a primeira que vem à mente. Mas há tantas outras… Geir Campos diria que ele é “um leitor especial”. Outros, vários, o comparariam a um advogado (do autor), ao ilustrador de um livro e até a um contrabandista de cavalos (!) (Paulo Rónai dá uma lista longa e muito curiosa dessas comparações e definições).

Esquisitices à parte, li outro dia a tradução mais perfeita do que seria, de fato, um tradutor. O escritor argentino Ricardo Piglia (autor de O laboratório do escritor) define os tradutores como “obscuros personagens extraordinários, escritores assalariados que escrevem a tantos centavos por palavra, os únicos verdadeiros profissionais da literatura, os novos autores de folhetim, que vivem dedicados à literatura, mas como escritores clandestinos, malvistos e mal pagos, os verdadeiros malditos, sempre postergados, sempre ausentes, e que por isso mesmo serão talvez os grandes criadores do futuro”.

Haveria expressão mais perfeita daquelas agruras e venturas que se acumulam no caminho do tradutor? Tradutores são naturalmente obscuros, com raras exceções (não vale citar algum escritor famoso que também seja tradutor; falo do tradutor profissional: “os verdadeiros profissionais da literatura”). De fato, o tradutor profissional é aquele que ganha a vida, verdadeiramente, escrevendo. É o assalariado que ganha — centavos, é verdade — pela palavra escrita, contada.

Mas são escritores clandestinos. Vivem nas sombras dos autores, das editoras, o nome quase invisível, nunca na capa, quem sabe na página de rosto — ou nem isso: só umas letras perdidas ali na ficha catalográfica. Sua dedicação à literatura é incontestável. Boa parte da literatura se lê em tradução, no Brasil e em boa parte do mundo — mesmo no “primeiro mundo”.

Comenta Susan Sontag que o tradutor, ao esmerar-se no ofício com “inventividade e respeito”, exprime da melhor forma possível sua lealdade à literatura, e dá sua contribuição no esforço literário — que é, acima de tudo, um esforço coletivo.

Voltando a Piglia, é interessante como, num curto parágrafo, soube ele condensar as agruras desse ofício — sublimando-as num vaticínio inseguro, mas profundamente otimista. Malvisto, mal pago, maldito, o tradutor é o próprio epítome do infeliz — que fez, aliás, uma escolha infeliz a escolher esse ofício. Ausente, o reconhecimento sempre adiado, resta-lhe apenas um talvez. Talvez — só talvez — será ele o grande criador do futuro.

Quem sabe criador, aqui, equivalha ao disseminador de uma literatura que, sem ele, ficaria demasiado restrita a uma língua, a uma região, ou mesmo a um tempo. O tradutor, nesse sentido, alarga as fronteiras da literatura. Por meio da tradução, a literatura se torna verdadeiramente uma arte universal.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

Rascunho