O velho problema da originalidade de uma tradução

O mundo da tradução novamente se vê agitado por um antigo problema, fonte de intermináveis polêmicas. Tradutor é ou não é autor? No campo da tradução literária, especialmente, a questão alcança temperatura elevada
01/08/2004

O mundo da tradução novamente se vê agitado por um antigo problema, fonte de intermináveis polêmicas. Tradutor é ou não é autor? No campo da tradução literária, especialmente, a questão alcança temperatura elevada. Não poucas vezes abordei exatamente esse assunto neste espaço. A polêmica, porém, pode ser diferida um pouco se se atinge consenso nisto: todo tradutor é autor de algo. Mas do que mesmo?

O tradutor é autor da tradução, certamente, mas também o seria de um texto dotado de “originalidade”? E quanto de originalidade haveria em cada tradução? Aqui começam os problemas maiores. Difícil haver consenso sobre a medida de originalidade existente num texto traduzido. Pode-se dizer, sem muito risco de errar, que essa quantia vai variar, e bastante, segundo a inventividade e a competência tradutória e criadora do tradutor. Mas permanece uma questão de fundo, que é de fato a questão crucial dessa história toda: pode um texto traduzido ser considerado “original”, em toda a extensão da palavra?

A tradução, como a produção de um texto original, representa o resultado de um trabalho intelectual. A própria lei brasileira reconhece isso, e ao produtor de um texto traduzido atribui direitos autorais. Com base nessa lei, de 1998, recentemente dois tradutores obtiveram vitória importante na Justiça, vendo atestado seu direito a receber uma porcentagem do valor de capa da trilogia O senhor dos anéis. Detalhe: os tradutores já haviam sido pagos pela tarefa da tradução, mais de dez anos atrás.

Trata-se de decisão de profundas conseqüências para o mundo da tradução e para o mercado editorial brasileiro. Já pensou se a moda pega? As editoras certamente terão de repensar e refazer suas relações com os tradutores. Os contratos terão que ser firmados em outras bases. Deixaria de valer o formato de “empreitada”, e passariam a viger, de fato, os direitos autorais. Mas ainda é cedo para entrar em especulações mais profundas, pois a decisão definitiva da Justiça deve demorar.

O fato é que surgiu um fato novo. O tradutor, deixando de lado uma proverbial timidez, e a antiga mania de parecer invisível, sai da toca e chama atenção para si. Saudável fato esse. Atitude, para usar palavra em sentido tão em voga, é pré-requisito para quem quer alcançar patamar um pouquinho mais elevado. E o tradutor nunca atingiu postos lá muito altos, a não ser, claro, as exceções de praxe.

A mera natureza intelectual do trabalho tradutório, dificilmente refutável, nunca lhe deu impulso suficiente para alçar vôos mais descolados. A questão da originalidade, isso sim, sempre foi determinante para o prestígio de um texto. A busca do novo e do original, a partir da afirmação da modernidade, deixaram a atividade do tradutor em cheque. E mais que isso: a transformou em cópia, atividade cuja essência não estava no intelecto, mas na mecânica. Daí até hoje a busca pela máquina que traduz perfeitamente (dizem, como sempre, que estão chegando perto…).

Para roubar uma idéia de Sergio Bellei, diria que o tradutor se acha diante de uma tarefa um tanto paradoxal: produzir originalidade na repetição. Talvez “repetição” aqui seja um termo quase forçado. Mas prevalece a força dessa idéia. A grande tarefa que se impõe ao tradutor é tecer, com o novelo sem pontas do texto, e com a destreza de que for capaz, os fios que vão compor um novo texto “original”. É uma boa briga, mas está apenas começando.

Eduardo Ferreira

É diplomata, jornalista e tradutor.

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